O relato de uma jovem universitária de 21 anos colocou em xeque o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual em Porto Alegre. Molestada no dia 9 de março no Parque da Redenção, em plena luz do dia, a jovem procurou no dia seguinte a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) da Capital para registrar a ocorrência. Saiu de lá com o boletim, mas uma semana depois publicou no Facebook um desabafo sobre o atendimento opressivo e humilhante que teria recebido no local.
Em 20 horas, a reportagem sobre o relato recebeu mais de 14,2 mil curtidas na página de ZH no Facebook e foi compartilhada 2,6 mil vezes. Além de inúmeros comentários de apoio à jovem, um psicólogo ofereceu tratamento sem custos para ela.
Por sorte, os agressores desistiram de violentá-la, mas fugiram levando seu celular. Mais chocante que o próprio abuso, contudo, foi a descrição detalhada do descaso com que ela teria sido tratada na Deam.
Ela teria sido desestimulada a registrar o caso, ouvindo frases como "Tu sabe que vai fazer a ocorrência porque tu quer, né? Não podemos fazer nada para te ajudar" e "mas tu não foi de fato estuprada, não é?", em referência ao fato de não ter havido penetração. Além disso, a jovem reclamou da ausência de privacidade no atendimento.
- Eu faço parte de grupos feministas e sou engajada na causa. Mas, um dia antes de isso acontecer comigo, no Dia da Mulher, eu mesma não sabia que havia tanto descaso justamente onde deveríamos nos sentir mais protegidas. Fiquei chocada - resumiu a universitária.
Veja o desabafo da jovem na íntegra:
Titular da Deam da Capital, a delegada Rosane de Oliveira Oliveira, afirmou que será aberta uma sindicância para "apurar o caso com rigor" e que a jovem será ouvida nesta sexta-feira.
- Tudo o que ela conta é exatamente o que não queremos que aconteça aqui. Nossa orientação é para um atendimento de atenção e acolhimento às mulheres - disse Rosane.
A delegada ressaltou que o abuso à jovem está sendo investigado com auxílio da 10ª DP da Capital, responsável pela área do parque, e que imagens câmeras de monitoramento da região serão analisadas para tentar identificar os criminosos. Também será solicitado à jovem que tente fazer o reconhecimento fotográfico dos agressores nos arquivos da 10ª DP.
Salma Farias Valencio, diretora do Departamento de Política para as Mulheres da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos do Estado informou que o órgão irá "acompanhar de perto" a apuração.
- Enquanto mulher e militante feminista, fico constrangida e indignada. Isso não pode mais ser admitido. Temos que garantir atendimento de respeito - declarou.
Assessora jurídica da ONG Themis, Lívia de Souza, voltada à proteção da mulher, crítica a falta de estrutura da polícia:
- Infelizmente, essa situação não é exceção. O Estado tem obrigação de reduzir o sofrimento da mulher tanto quanto possível e dar esperança de que os casos de abusos serão pelo menos investigados - disse.
A desistência da universitária em fazer o exame de corpo de delito no Departamento Médico-Legal (DML), após ser informada que um perito homem faria o serviço, também gerou polêmica. O departamento afirmou que conta com peritas, mas a disponibilidade obedece a escala dos funcionários e as vítimas não tem como optar no momento do atendimento. A delegada não vê problema em homens realizam o exame em vítimas de estupro.
- Deveria haver um plano B, com uma mulher para atendê-la, mas isso não significa que um profissional homem não esteja preparado. Fosse assim, os ginecologistas homens morreriam de fome - comparou Rosane.
DML garante que perito era médico e profissional
Por e-mail, o diretor do DML, Luciano Haas, disse que todo o departamento está solidário "com essa indescritível dor física e psicológica" que a jovem foi submetida e que concorda com várias partes do relato, principalmente na questão da insegurança e falta de liberdade que vivemos por este motivo, mas quis esclarecer alguns pontos criticados por ela.
Haas garantiu que o DML tem gerador e que uma lâmpada pode ter apenas queimado, disse que há presos no prédio, porque todos os detentos são obrigados a passar por perícia antes de ir para o presídio, e focou no fato de que o perito é médico-legista formado. Na publicação, a universitária disse que ele "nem médico seria".
- Entendo a tua situação, mas chega a ser desrespeitoso para um médico alguém cogitar que um exame deste não seja de caráter totalmente profissional. Além disto, o exame é sempre realizado com a presença de uma auxiliar (mulher) para realizar as coletas e auxiliar no procedimento - pontuou Haas.
Por fim, o diretor disse que o DML possui um serviço de apoio psicossocial com dois psicólogos e três assistentes sociais. Reiterou que não houve encaminhamento da jovem para o serviço, pois, primeiro, é realizada a perícia física para depois o médico encaminhar a vítima para assistência, que fica ao lado da sala de exames. Como ela recusou se submeter ao exame com o perito médico-legista, pelo fato de ser homem, "não houve a oportunidade do encaminhamento".