* Artista plástico, escritor e editor
As artes das ruas seriam a arquitetura, o paisagismo, a linguagem de equilíbrio visual e o espaço urbanístico confortável para se transitar e conviver. Isso foi uma utopia do final do século 19 e do início do século 20. Utopia que se realizou em parte e depois foi abandonada por motivos variados: o crescimento populacional, os adensamentos urbanos, as crises econômicas e as guerras.
Hoje temos um duríssimo confronto visual na paisagem urbana, regida pelo ávido mercado da publicidade com sua profusão de informações, placas, chamarizes, luminosos, faixas; temos a especulação imobiliária com uma variedade de estilos arquitetônicos de qualidade duvidosa e procedências diversas, ainda que algo se preserve ao longo dos tempos.
Retângulos brancos, muros e espaços brancos fazem parte da linguagem de equilíbrio da arquitetura moderna e contemporânea. O prédio de concreto branco da Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre (e sua vigilância presencial 24 horas por dia para mantê-lo imaculado) é prova disso.
De alguns tempos para cá, em muitas cidades do mundo, floresceu uma linguagem visual de pichações de garranchos e ilustrações fartamente coloridas que logo infestou e conferiu essa iconografia do caos a todas as aglomerações urbanas indistintamente.
São todas semelhantes porque as ilustrações urbanas são cópias umas das outras, como se os autores consultassem um catálogo universal de moldes e os aplicassem em locais diversos. Iconografia de redundâncias ilustrativas que funciona como o mercado - uma franquia de fast-food em que há um logotipo e o que se apresenta é igual na imagética, na feitura e no acabamento (que pouco varia e é sempre excessivo). Há também o consumo de suprimentos, de tintas e de tubos de sprays, que são bastante caros. Tudo é mercado e tudo é consumo.
Curiosamente, essa iconografia do horror é bastante conservadora - quase nunca é abstrata, a não ser quando aglomera símbolos/letras e produz umas mandalas barrocas, destituídas de significado - é, na maior parte das vezes, de viés figurativo, evocativa de temas banais ou laudatórias a personalidades. São tão mal pintadas na maior parte das vezes, que parecem mais insultos do que elogios, porém os mais agredidos e insultados serão sempre os cidadãos obrigados a ver essas "obras" tão mal realizadas.
É uma expressão esquizofrênica que serve a vários senhores. Quando acontece de forma invasiva contra os monumentos, contra as paredes externas de museus e instituições, danificando o equipamento urbano, pelas fachadas externas dos prédios invadidos à noite ou contra o muro externo que o cidadão manda pintar e paga com seus recursos, para ver o serviço meticuloso destruído na manhã seguinte, é o que parece ser: vandalismo e agressão ao patrimônio público e privado.
No entanto, há a demagogia, que sempre faz sua aparição sob a capa da conveniência de interesses. Sempre haverá um oportunista de plantão a sugerir um espaço para tornar infernal a vida dos cidadãos ao juntar toda essa obra medonha - pode ser numa via expressa, num túnel, num muro de uma estação de serviços públicos ou numa triste praça de convívio. O discurso equivocado e relises de assessorias de imprensa afirmam que tudo aquilo, tão precário e medonho, seria belo e tratar-se-ia de uma contribuição cultural, o que não é verdade.
Como impedir que isso se espalhe por outros espaços com outras finalidades ideológicas?
Recentemente, a população de Porto Alegre viu a provocação estampada frente a si, apontando o confronto e impondo uma visão totalitária de valores transversos. Está acontecendo neste momento, justamente com um painel ilustrativo público, no bairro Santana, próximo à Azenha, ao Instituto de Cardiologia e ao Palácio da Polícia, num condomínio popular construído e cedido a moradores carentes pela prefeitura de Porto Alegre.
Um grafite em homenagem a um chefe de tráfico, recentemente morto em confronto de gangues rivais. Aparentemente, o homenageado habitava ou frequentava o condomínio popular. O painel, mal pintado (basta observar os braços e as mãos) representa o traficante, com seus símbolos de ostentação, corrente, relógio de ouro, camisa Lacoste e faixas que o apontam como General... como um herói popular.
O painel está na parede lateral do prédio, em frente ao espaço de recreio das crianças de uma escola pública da Prefeitura.
Tudo é mercado e tudo é consumo.
Consta que o cachê do ilustrador foi de R$ 15 mil, mais o suprimento de tintas e sprays e o aluguel de uma sofisticada grua hidráulica por quatro dias. Quatro teriam sido os seguranças a proteger o ilustrador durante o período de sua malfeitoria.
Quem pagou por esse painel e essa logística fora do comum? Que "mecenas" e qual a procedência desses recursos? Como se deu a aprovação na reunião de condôminos, dessa comunidade carente que "poderia" direcionar tal quantia a essa finalidade tão estranha? Alguma voz fez objeção à realização do painel, quiçá na presença de quatro seguranças mais o "porta-voz do mecenas"?
O que resta é a iconografia do horror a emitir alertas à população e às outras gangues sobre um império de terror que se incrustra como um câncer na paisagem urbana e na paisagem cultural. Isso não é arte, isso é a instrumentalização do terror para disseminar a imposição do medo às comunidades urbanas.
Como nos alerta Jean Clair (brilhante pensador da Arte, ex-diretor do Museu Picasso de Paris e curador da Bienal de Veneza) estamos vivendo "o inverno da Cultura e ele será longo".