*Doutor em Filosofia (UFRGS), visiting scholar na Columbia University e curador do projeto Fronteiras do Pensamento
Convidado para um evento sobre sharing economy, aceitei. Sem muita convicção, confesso. Em um semestre sabático, coisas assim acontecem. Você lê o título do negócio, acha levemente inte ressante e vai, por que não?
Quando entrei no Impact Hub, no quinto andar de um edifício qualquer, no Tribeca, me dei conta de que havia ganhado a noite. Era um espaço de coworking, na linguagem dos insiders. Daqueles ambientes nova-iorquinos em que tudo parece meio-descontraído-demais, mas você logo percebe que é perfeitamente-organizado-demais. Sem problemas.
Música boa, idem para a comida. A turma jovem e descontraída. Só não tinha um copo dagua, nem uma coca de latinha. Só vinho. E cerveja, dessas que os americanos tomam nos filmes, cada vez que chegam em casa. Fiquei na mão. Minha ideia era não beber naquela noite. Saquei que era um tipo meio analógico ali. Tentei me proteger, abrindo meu laptop. Não era a melhor atitude.
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Na entrada havia recebido um crachá, pra escrever meu nome, com letra grande. O negócio era fazer networking, coisa que se leva realmente a sério por aqui. Nada de ficar escondido num cantinho, escrevendo. O foco é conversar. Ver quem parou do seu lado e fazer a pergunta certa. Depois, cuidar pra não ficar grudado na pessoa. É trocar os cartões e, mais adiante, fazer um follow up. Há, inclusive, técnicas de como se comportar em um coquetel. Nunca gostei de coquetéis. Eles não são o melhor lugar do mundo pra gente muito alta.
Na exata hora marcada, a coisa começou. A primeira a falar foi Rachel Botsman, coautora de um best-seller na área, Whats Mine, is Yours. Na sharing economy, me dei conta, é sempre melhor ser coautor ou co-alguma coisa, ao invés de fazer carreira solo. Rachel é uma das estrelas desse novo mundo.
A internet e os novos recursos de programação, diz ela, deram escala a uma antiga intuição humana: fazer negócios, sem muitas formalidades, com as pessoas em quem confiamos. É a trust-mechanics, ou a confiança criada artificialmente. Ela surge do registro das transações que cada um vai fazendo, ao longo do tempo, em um determinado negócio. Surge em especial das avaliações que seus parceiros ou consumidores fazem sobre você. Assim, podemos saber que Mr. Smith alugou seu apartamento do AirBnb para 25 pessoas, de oito países diferentes, e foi aprovado em 93% dos casos. Logo, Mr. Smith é um tipo em que se pode confiar.
A conversa logo chega ao tema predileto de Rachel: a reputação. Tudo, diz ela, vai se decidir a partir do seu reputation capital, o ativo mais importante na wired economy do século 21. Tudo que você faz vai estar lá, registrado, contabilizado, tabelado. Cuidado com seu reputation trail, dizia aquela moça elegante, formada em Oxford, com um jeito de quem está avisando.
Quer você goste ou não, faz parte de um ranking. Me deu um certo desconforto. Comecei a me sentir culpado de alguma coisa. Mas logo passou. Me dei conta de que não tem jeito. O negócio é andar na linha. Sua colocação, em qualquer ranking, vai sempre depender da opinião dos outros.
No final da palestra, já estava achando aquilo tudo muito razoável. Pensei até em fazer uma pergunta. Mas a moça do meu lado se antecipou. Era sobre a privacidade das pessoas. Se havia o risco de alguém extrapolar. Ficar avaliando o seu desempenho amoroso, por exemplo, ou dando nota pra cada roupa que você usa, todos os dias, no serviço. Pensava nessas coisas, quando me ofereceram um sushi, e o evento seguiu em frente.
O debate com Rachel foi mediado por Wrede Petersmayer, um tipo que parecia vindo direto do seriado Velozes e Furiosos. Wrede é diretor do AirBnb, espécie de Google ou Apple da sharing economy. Com a indefectível longneck em uma mão, microfone na outra, foi direto ao ponto que interessava a todos: para onde vai crescer a crowd industry, em que setores e que tipo de público? Fiquei sem entender direito a resposta, mas ela pareceu dizer: onde o mercado old fashion criar um problema, a nova economia vai resolver.
Os bancos complicam no financiamento? Coloque seu projeto no Indiegogo, o portal de crowdfunding do momento. Basta um clique, no celular, e você investe o valor que quiser. Doações pra sua ONG? Vai no Doaree faz a mesma coisa. A moça do lado balançava a cabeça, concordando. Me lembrei do meu tempo, em Porto Alegre, tentando convencer o gerente do banco a fazer uns débitos em conta.
Na sequência, falou um sujeito simpático, Benzy Rowen, Founder & CEO da Farmigo, uma rede de compras coletivas de alimentos fresquinhos, sem intermediários, direto dos local farmers, os produtores agrícolas perto das cidades. Contou que o negócio, aqui em NY, nasceu no seu apartamento, numa noite qualquer em que lhe deu na telha reunir os vizinhos e fazer um rancho coletivo. O foco era pagar mais barato e comprar alimentos mais saudáveis.
Pelo que entendi, os produtos, aqui em NY, são feitos para durar semanas nas prateleiras. Você enxerga o mesmo legume simpático durante dias, com cara de novo, no supermercado. Tem alguma coisa errada ali. É disso que Benzy quer nos livrar.
A empresa tem sede no Brooklin, que irá ultrapassar, ele assegura, San Francisco, como meca da economia colaborativa.Benzy Rowen conta, com algum entusiasmo, que a sharing economy havia mudado sua vida, uma vez que havia lhe permitido conhecer, até a intimidade, todos os seus vizinhos. A perspectiva me pareceu assustadora. Conta que sua mulher, no inicio, não gostou de ver o apartamento transformado, segundas à noite, em uma espécie de atacadão doméstico. Depois se acostumou. Os novos tempos pedirão que você aprecie pessoas, mesmo que elas sujem um pouco o tapete da sala.
Na sequência, uma turma de jovens empreende dores subiu ao palco, para apresentar suas start ups. Algumas bem crescidinhas. A moça da Sailo, empresa de compartilhamento de barcos, tentou um lance de efeito, perguntando quem, na plateia, não gostaria de disponibilizar seu barco, alguns dias na semana, e ganhar um bom dinheiro com isso. De fato, ninguém ali parecia ter um barco, e ela emendou rápido: ou então alugar um... Um tipo chamado Randy Brandoff, terno bem alinhado, fundador da 11 James, apresentou um dos melhores cases da noite: uma assinatura anual, pela qual você compartilha o uso dos melhores relógios do mundo. A cada dois meses, com uma anuidade de US$ 11 mil, você vai para o serviço com um Patek Philippe, marca de relógio que, confesso, jamais havia ouvido falar.
No intervalo, um sujeito veio fazer um networking e me ofereceu uma nota de 100 bonos. Vim a saber que se trata de Mike Dolan, co-founder da Igobono, cujo foco é "mudar a forma como fazemos negócios". Todos temos um bocado de coisas que não usamos mais, no fundo de um armário. Por que não colocar à venda, usando os bonos como moeda de troca? Brinquei que era uma ideia ultraliberal, visto estarem criando uma moeda independente do FED, o banco central americano.
De certa forma, era isso mesmo. Aliás, era o que havia de excitante em todos aqueles negócios: menos intermediários, autorregulação. A sharing economy é, em algum sentido, uma grande "revolta dos consumidores". Revolta lucrativa, fruto da tecnologia e da juventude. Um chega-pra-lá na burocracia das empresas e na fúria regulatória dos governos. O capitalismo se reinventa. A liberdade vai produzindo ganhos para todos.
Os melhores negócios me pareceram os que compartilham "experiências de vida" e talentos. Você quer orientação sobre como abrir um negócio na Tailândia, ou fazer o business plan de sua ONG? Sem problemas. Basta entrar no Sparehire e buscar o consultor certo. Seu reputation dash board estará lá para dar crédito a sua virtual trust.
Gostei da ideia. Gostei das novas palavras. E da comida. Só a bebida não experimentei, pois resolvi manter minha promessa. Ponto importante para meu own reputation trail. Ao menos um novo conceito, inútil, inventei.
No caminho de volta, pensativo, no metrô, criei umas três ou quatro novas empresas. Não sou nenhum millennial, ponderei, e me dei conta de que já havia criado, como quase todo mundo, algumas coisas. E de que seria bom viver em uma comunidade que estimulasse a inovação, desde muito cedo. Um pouco daquilo que eu havia assistido naquela noite fria de final de outono, no meu período sabático, em Nova York.
Economia colaborativa
"Sharing economy" reinventa o capitalismo e o conceito de reputação
Fazer negócios, sem muitas formalidades, com as pessoas em quem confiamos, faz parte de um novo conceito
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