* Historiador, Arqueólogo e professor da UFRGS. Escreve mensalmente no PrOA.
A primeira, ausente nestas plagas. Hýbris, a transgressão ética, religiosa, jurídica e política crucial para o povo que inventou os fundamentos, deles e nossos. Desmedida, ultrapassar a dimensão humana e logo desencadear rancores destrutivos. No mito, trata-se da arrogância que leva à catástrofe, examinada na tragédia grega; na política, ataca-se o excesso de ambição que leva à crise (guerra civil ou ostracismo). Com esta categoria, o pensamento histórico grego evoluiu, atacou anomalias sociais e pactuou um regime preocupado com o equilíbrio e a liberdade, fontes da felicidade comum. Os alvos máximos eram plutocratas, oligarcas e tiranos. No cume dramático de Édipo Rei (c. 425 a.C.), Sófocles denuncia: "A hýbris nutre o tirano" (voz do coro, verso 863). O sujeito da hýbris era dito hybristês, alguém que cometia excessos, ultrapassava o razoável, feria os limites da condição humana, em plano sagrado e histórico. O hybristês julga-se heroico ou divino.
Nenhuma oligarquia grega (ou de qualquer povo) foi tão perfeita quanto a brasileira. Um grupo reduzido de elementos considera-se sobre-humano, e se assegura privilégios inacessíveis aos demais, sobretudo aqueles procedentes do Estado. Neste caso, Leviatã (Estado) opera não para um rei garantidor da ordem e da paz social, como teorizou Hobbes (1651), mas para o conforto de um pequeno grupo alienado da realidade histórica. Esta presunção oligárquica é forma clássica da hýbris, e gera, naturalmente, rancores e violências latentes, tanto pelo agravamento da miséria quanto pelo sentimento de injustiça que se dissemina como sensibilidade moral coletiva. "Um mal para si faz quem pratica tortas sentenças", disse Hesíodo (séc. 7º a.C.), no texto (Os Trabalhos e os Dias) em que denunciava os "juízes comedores de presentes" e o caráter reflexo do mal social inaugurado com a torpeza judiciária. Nestes casos, ninguém pode perceber justa bonança na riqueza desfrutada (bem vestir-se, ir a Miami...), antes vê-se a usurpação de bens sociais, a péssima partilha latejando como nódoa, a vaidade como símbolo de dignidade putrefacta.
A vacina grega contra tais males foi complexa. Houve longo período (do século 8º ao 6º a.C.) de guerra civil (stásis), mortes, emigrações, golpes e, simultaneamente, especulação ética, moral, jurídica e política feita por pensadores, reformadores e poetas, especialmente um reformador-poeta, Sólon de Atenas (c. 638 - 558 a.C.). Assunto: as palavras hýbris, díke (justiça), métron (medida) e nómos (convenção). O resultado foi a produção do que Heródoto (séc. 5º a.C.) chamou "a mais doce das palavras": a isonomia, um regime baseado em noções de equilíbrio geométrico, sensível às discrepâncias entre ricos e pobres, seguro de que um ambiente de oportunidades igualitárias coopera para a emergência do bem comum. Aqueles gregos dedicavam-se à busca e à difícil preservação de parâmetros, ponderados com a ciência dos números; eis como Pitágoras nutriu o regime que mais tarde os atenienses chamaram democracia. Era, sobretudo, isonomia: a busca e a defesa, pela pólis (Estado), de parâmetros razoáveis para o convívio social. Sem hýbris e sem oligarquia, inimigas da isonomia, ameaças à democracia.
Parte desta evolução social decorreu da ação de aristocratas reformadores pelo bem social, que cometiam o que em Ciência Política se chama "suicídio de classe". Péricles, que expôs sua vida muitas vezes, não se importaria de ser chamado de "esquerda caviar", mas abriria novos combates pela democracia, em um país de ideologias oligárquicas tão vigorosas, como o Brasil.
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Dos gregos à Sicília, e nesta o início da excelente narrativa de Tarantata, livro de Cíntia Lacroix que li com enorme prazer neste início de férias, e que recomendo vivamente (Dublinense, 2014).