O espaço exato da marquise do prédio de número 393 da Rua da República, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, está ocupado por uma grade antimorador de rua. A engenhoca começa na parede e vai descendo feito tobogã em direção ao chão. Assim, impede que qualquer pessoa invente de tirar uma soneca protegida das intempéries.
O equipamento foi instalado pelo síndico contratado do Condomínio Puebla, André Rodrigues, baseado nas reclamações dos condôminos sobre o mau cheiro. A estrutura para evitar a presença dos moradores de rua no local, porém, vem sendo criticada nas redes sociais por ocupar quase um terço da calçada e pela desumanidade com os sem-teto.
Os vizinhos das redondezas não se identificam ao falar sobre a grade para não criar conflito com os condôminos do 393. Ao se aproximar, um senhor de cabelos grisalhos balançava a cabeça negativamente, olhando para o aparato. Parou e reclamou:
- Que absurdo. Não pode um negócio desses obstruindo a calçada - disse.
Imagem de cartilha da Smov mostra o trecho da calçada que pode ser mexido, o de número 4, mas sempre sob autorização da prefeitura
Foto: PMPA, Divulgação
Ao perguntar se queria se identificar, respondeu que "nessa briga não dá para se meter, não". Uma mulher que saía de um prédio próximo também criticou a instalação.
- É um perigo. De noite pode vir alguém caminhando e tropeçar na grade - alertou.
Leia todas as notícias de Zero Hora
Leia todas as notícias de Porto Alegre
Outra vizinha admitiu que colocaria uma cerca em torno da entrada do empreendimento que tem no bairro, se fosse permitido. Há 11 anos com um negócio nos arredores, avaliou que nunca houve tanto morador de rua no bairro. Ela pensa em mudar de endereço porque os clientes acabam sendo "achacados" pelos moradores de rua.
Locatários de um apartamento no Puebla, a chefe de cozinha Ana Paula Cardoso, 26 anos, e o gerente de casa noturna Welinton Pinzon, 26 anos, se posicionaram contra a instalação da grade e disseram que não foram consultados sobre a obra, apesar de admitirem que o mau cheiro era intenso no local e combatido com altas doses de criolina todas as manhãs. Eles reconhecem o problema social, no entanto lamentam que a prefeitura não resolva o problema dos sem-teto.
- Eu acho ridícula essa grade, mas quando chamaram a prefeitura não havia só dois moradores de rua deitados, eram até oito. O único problema que tínhamos com os moradores de rua era o cheiro - comentou Pinzon.
Leia mais
Maioria dos moradores de rua de Porto Alegre se recusa a ir para um albergue
Morador de rua transforma parada de ônibus em casa em Porto Alegre
Promotoria orienta que sem-teto deixem as ruas em Porto Alegre
O condomínio pagou cerca de R$ 1,5 mil pela estrutura. Quem administra a conta do Puebla é a imobiliária Sperinde, que confirmou que as decisões cabem ao síndico. Rodrigues avisou que, se a Smov resolver multar o condomínio, vai se defender:
- A grade foi uma alternativa que a gente achou. Se a Smov quiser nos notificar, vou exigir o mesmo tratamento aos bares da rua, que ocupam as calçadas com mesas e cadeiras.
A Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov) já acionou seus fiscais para irem até o prédio. O órgão informou que o condomínio terá 30 dias para retirar a estrutura. Os moradores podem receber multa de R$ 514 por obstrução da calçada. Uma cartilha do órgão define as regras para utilização das calçadas, e proíbe diversos tipos de intervenções que possam atrapalhar a circulação.
Mesmo com a grade, dois moradores de rua dormiam tapados até a cabeça em frente ao prédio na manhã desta terça-feira, só que mais adiante, perto do meio-fio. Segundo vizinhos, outro costume na região é enxotar essas pessoas com jatos de água de mangueira, como se lavassem a calçada.
Por causa da grade, sem-teto passaram a dormir um pouco mais distantes do prédio
Foto: André Mags
Especialista classifica artimanha como "trágica regressão civilizatória"
Quem começou com essas táticas antimoradores de rua foi o próprio Estado (ou seja, o poder público em geral), ao fechar espaços embaixo de pontes e viadutos e instalar barras em bancos de praça para evitar que alguém deite neles. A constatação é do sociólogo Eber Marzulo, professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele lembra que moradores de rua são intrínsecos à civilização ocidental. No passado, costumavam ser acolhidos por serviços pastorais. Hoje, essa atividade foi incorporada pelo Estado.
- As comunidades cuidavam dos seus pobres. Hoje, não se lida mais com o pobre, e sim com a pobreza, o que é uma concessão abstrata. (A grade antimorador de rua) é uma forma de negar o direito à existência dessa população. A ideia é uma trágica regressão civilizatória - afirmou.
Estruturas antimoradores de rua são comuns em Porto Alegre. Segundo a Smov, há denúncias contra prédios nas avenidas Borges de Medeiros e João Pessoa. Também há relatos de edifícios com o mesmo estratagema nos bairros Bela Vista e Petrópolis.
Vãos de pontes foram fechados na Avenida Ipiranga
Foto: Robinson Estrásulas
Além disso, bancos com barras de ferro para evitar que sem-teto deitem foram colocados na Praça General Daltro Filho no ano passado. Menos recentes são os fechamentos de vãos em viadutos e pontes para impedir que sejam usados como abrigo, com destaque para a Avenida Ipiranga. Outra estratégia é rechear o piso sob viadutos com paralelepípedos de pontas viradas para cima.
Banco antimoradores de rua foi instalado na Praça Daltro Filho no ano passado
Foto: Fernando Gomes
No final da tarde desta terça-feira, a Fasc encaminhou uma nota sobre a situação dos moradores de rua:
A Política de Assistência Social do Município busca oferecer toda a assistência e acompanhamento às pessoas em situação de rua na tentativa de promover o acesso à rede de serviços socioassistenciais, bem como reinseri-los às comunidades de origem. Não compete à Fundação de Assistência Social e Cidadania retirá-los da rua, mas buscar, através da formação de vínculos no espaço rua, o acesso aos espaços de proteção e às demais políticas públicas.
O Serviço de Abordagem Social trabalha prioritariamente com a possibilidade de retomada do vínculo com a família, com a comunidade e também com a perspectiva de produção de autonomia. A partir da discussão de caso com a rede de proteção regional, que inclui serviços de assistência social, saúde, escolas, entre outros, é estabelecido um Plano de Acompanhamento visando construir alternativas para a situação de rua, na perspectiva de garantia de direitos.
Em muitos casos o Serviço Especializado em Abordagem Social tem êxito, promovendo o acesso dessas pessoas aos espaços de proteção, mas muitas vezes esse acolhimento não é aceito ou eles voltam ao espaço da rua.
A Fasc vai continuar acompanhando as pessoas em situação de rua com transversalidade e intersetorialidade entre as políticas públicas.
O serviço de abordagem social pode ser solicitado durante o dia pelo telefone 3289-4994 e à noite pelo telefone 3346-3238.
Piso sob o Viaduto Dom Pedro I conta com paralelepípedos com pontas para cima para evitar que pessoas se acomodem ali
Foto: Félix Zucco