O que restava de pacato em um bairro que foi palco da transição da passagem linhas de bondes à construção de grandes avenidas, por onde hoje circulam de bicicletas a caminhões e se empilham escritórios comerciais, foi atropelado por um conflito de interesses nos últimos meses.
Publicada no dia 22 de janeiro no Diário Oficial de Porto Alegre, a lista que inclui mais de 500 imóveis do Petrópolis no Inventário do Patrimônio Cultural de Bens da Capital foi o estopim de um embate entre proprietários e prefeitura.
Setores responsáveis pela preservação da herança histórica, arquitetônica e urbanística da cidade destacam a realização de estudos técnicos para a escolha dos bens a serem preservados.
- Esse trabalho teve uma série de etapas. A primeira foi uma visão geral do bairro para reconhecer os imóveis de interesse. Buscamos estilos, tipos arquitetônicos, bens excepcionais (como a Igreja São Sebastião e o Petrópole Tênis Clube) e fizemos uma seleção que foi para a avaliação de um seminário interno. Depois, ela passou pelo conselho do patrimônio histórico e por representantes da sociedade civil e da prefeitura. Só então foi para a homologação do prefeito - explica o arquiteto Luiz Antônio Custódio, coordenador da Memória Cultural da Secretaria Municipal da Cultura.
Diferentemente do tombamento, que protege integralmente os imóveis, os bens inventariados podem sofrer alterações, desde que preservadas algumas de suas características. Segundo Custódio, existem dois tipos de inventário: de estruturação e de compatibilização.
Enquanto os imóveis considerados de estruturação são, de fato, "alvo" da proteção do município - motivo pelo qual não podem ser destruídos ou alterados em seu exterior -, a outra categoria inclui os lindeiros, com o objetivo de manter a ambiência do imóvel ao lado. Embora possam ser demolidos, uma nova construção deverá preservar a mesma altura do imóvel vizinho.
A maioria dos inventários do Petrópolis - inclui mais de 350 imóveis - é de estruturação. As condicionais geradas pelo processo de inventariação desagradaram proprietários desses imóveis do bairro que, embora ainda predominantemente residencial, tem se verticalizado ao longo das últimas décadas.
Proprietários podem recorrer até 16 de maio
Mais de uma centena de insatisfeitos participou, em 10 de abril, de uma reunião pública no Petrópole Tênis Clube para debater o inventário e pedir o revogação da ação. Eles contestaram a lista, que conteria erros e, segundo entendimento da Associação dos Moradores do Bairro Petrópolis Atingidos pelo Inventariamento da Prefeitura (Amai), é fruto de um processo pouco transparente.
- As pessoas não foram notificadas pessoalmente, nem sabem por que sua residência foi escolhida e a do vizinho não. Além disso, o inventário proíbe o morador de fazer uma coisa que o Plano Diretor diz que ele pode, que é construir (um edifício). Se o caso é salvar as casas, teria de alterar o plano - defende Angélica Crusius, arquiteta e secretária da Amai.
Proprietários dos imóveis inventariados têm até o dia 16 de maio para entregar uma defesa pedindo a exclusão da lista divulgada pela prefeitura, que será avaliada individualmente. Atualmente, a associação de moradores busca apoio de vereadores para vibilizar uma reunião com o prefeito José Fortunati, na tentativa de anular (e não mais revogar) o ato.
Levantamento de imóveis para o Inventário do Patrimônio Cultural de Bens deverá ocorrer em toda a Capital
O Petrópolis, que antes do processo já contava com alguns bens inventariados, como a Praça Mafalda Verissimo e a casa onde funciona o restaurante Barranco, na Avenida Protásio Alves, não é o primeiro e nem deve ser o último bairro de Porto Alegre a passar por inventariação.
Regiões como o Centro Histórico, os bairros Independência, Moinhos de Vento, Farroupilha, Santana, Cidade Baixa, Bom Fim e IAPI já tiveram imóveis protegidos pela prefeitura, que pretende estender o processo pela cidade.
- Poucos municípios têm imóveis inventariados pelo poder público. É uma maneira de preservar as características fundamentais dos bairros. O Petrópolis tem casas no estilo art deco, colonial espanhol (neocolonial), modernista, além de diversos conjuntos arquitetônicos que representam isso. Sabemos que o processo acarretou alguns erros, mas são erros sanáveis. Tudo será levado em consideração para buscarmos soluções - diz o arquiteto coordenador da Memória Cultural, Luiz Antônio Custódio.
Proprietária de uma residência na Rua Dario Pederneiras, Rosa Maria Marin Pacheco acredita que a inventariação é arbitrária e desvaloriza os imóveis. De acordo com ela, que cresceu no Petrópolis, sua família não tem intenção de vender a casa, construída nos anos de 1950 e incluída na listagem da prefeitura.
- Ninguém explicou por que nosso imóvel entrou na lista. Não pensamos em vendê-lo, mas agora passou a valer menos. Além disso, a casa está cercada de prédios. Por que minha família têm de querer se manter entre esses edifícios? - questiona.
Movimento reúne assinaturas em defesa do inventário
Se por um lado, a ação da prefeitura desagradou proprietários, por outro, moradores do bairro e até mesmo de outras regiões da cidade defendem que é preciso preservar o que resta da arquitetura do Petrópolis.
A moradora Milena Vieira de Oliveira observa que o bairro tem crescido de forma "desordenada" desde o final dos anos 1990. Ela acredita que o inventário pode auxiliar no ordenamento desse processo, permitindo que o "antigo e o novo" se complementem.
- Entendo que ao conservar seu patrimônio histórico cultural não estamos impedindo a evolução do bairro e mantendo casas "velhas", como já ouvi de alguns. Estamos preservando a essência do Petrópolis, auxiliando a permanência dos costumes dos seus moradores e da ambiência local, que é o que o bairro tem de mais singular e importante - resume.
Criadora do blog Chega de Demolir Porto Alegre e organizadora do movimento de mesmo nome, a advogada Jacqueline Custódio acredita que a inventariação do Petrópolis não é uma questão restrita ao bairro. Moradora da zona sul da Capital, ela divulga na página do movimento no Facebook uma petição pública que apoia o documento.
- A proteção do patrimônio cultural não é uma questão só do Petrópolis, mas de Porto Alegre inteira. Percebemos que alguns proprietários ficaram insatisfeitos com os encargos que recaem sobre eles, e são mais onerosos do que deveriam. Mas queremos colocar em dicussão alternativas, abrir canais de comunicação para rever a legislação e articular benefícios para que as pessoas queiram manter o patrimônio - esclarece.
O blog criado por Jacqueline em janeiro de 2013 foi inspirado em iniciativas realizadas em cidades como São Paulo e Buenos Aires. O surgimento de adeptos motivou a criação do movimento Chega de Demolir Porto Alegre, em junho do ano passado. Divulgado pelo grupo, o abaixo-assinado em defesa do inventário do Petrópolis pode ser acessado clicando aqui.
Os princípios da seleção
Saiba quais foram os critérios utilizados para a escolha dos imóveis inventariados no bairro Petrópolis:
VALOR ARQUITETÔNICO
l Atribuído às edificações que oferecem particular interesse pelas qualidades formais que apresentam sua fachada e volumetria, pelas qualidades dos materiais e técnicas construtivas e por apresentar características típicas de algum estilo arquitetônico ou tipologia representativos da história da cidade.
VALOR CULTURAL (HISTÓRICO)
l Atribuído às edificações que possuem condição de permanência na memória coletiva e por isso são referência para a história e tradição do bairro.
VALOR PAISAGÍSTICO
Atribuído às edificações que, em conjunto, são fundamentais para a composição e leitura da paisagem urbana. Com mais de 700 imóveis inicialmente registrados, a seleção final contou ainda com outros dois critérios importantes:
ESQUINAS
l Consideradas fundamentais para a composição da ambiência de uma quadra, a seleção de edificações de esquina foi priorizada em relação às edificações de meio de quadra.
CONJUNTOS
l As edificações passaram a ser melhor avaliadas quando integram conjuntos, por produzirem um efeito importante na paisagem urbana e na leitura morfológica das quadras. Foi considerado como conjunto um mínimo de duas edificações lindeiras.