Imagine a Porto Alegre de 1913. Os primeiros automóveis, as dezenas de cinemas de calçada, o início da rivalidade Gre-Nal, os bondes elétricos estreando. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, a cidade tem 150 moradores com mais de cem anos e idade suficiente para puxar na memória este momento da cidade.
Eles presenciaram as variadas transformações: os prédios têm outra cara e tamanho, as ruas se multiplicaram em largura e quantidade, os bondes saíram de circulação e os carros, que eram novidade, brigam por espaço. O retrato da Porto Alegre de 1913 está fresco na cabeça de Sérgio da Costa Franco. Embora tenha nascido 13 anos depois, em Jaguarão, o historiador, advogado e jornalista, autor de livros definitivos sobre a cidade, como Porto Alegre Ano a Ano e Porto Alegre: Guia Histórico, dedicou-se tanto à pesquisa que parece ter vivido cada momento de sua história.
Em uma conversa informal, na casa de Costa Franco, ele lembrou momentos marcantes do ano de 1913, cem anos antes do aniversário de 241 anos de Porto Alegre, na próxima terça. Confira os relatos do historiador:
Economia
"O início do século 20 é um momento de muito progresso industrial e econômico em Porto Alegre. A cidade foi, em determinado momento, muito próxima de São Paulo. Lá por 1910 não se falava em PIB, mas Porto Alegre tinha mais ou menos dois terços da produção de São Paulo. No início da República (1889) começa o desenvolvimento de Porto Alegre, são fundadas aqui várias fábricas importantes, a Fiateci (Companhia Fiação e Tecidos Porto Alegrense), a Companhia de Vidros Sul-Brasileira, a Wallig, de fogões e camas, a Berta, firma do Alberto Bins, que também fabricava fogões e camas de ferro. Eram metalúrgicas expressivas. Grande parte a cidade perdeu para a região metropolitana e hoje Porto Alegre quase não tem mais fábricas".
Funcionários saindo da fábrica que ficava na Voluntários da Pátria, esquina com a Avenida São Pedro - Foto: Banco de dados/Agência RBS
Os carros
"Um fenômeno novo que vai transformar a cidade é o trânsito de automóveis. O primeiro surgiu em 1906, mas em 1913 já surgiu o primeiro regulamento de trânsito ainda com velocidade máxima de 10 km/h na zona urbana e 15km/h na zona suburbana. Isso obrigou o calçamento das ruas. Já um pouquinho antes tinham carros puxados a cavalo e isso já exigia calçamento, então, em 1870 começam várias ruas a ser calçadas, primeiro com pedra irregular e depois com paralelepípedos. Mais tarde, no século 20, o automóvel aparece e quase todas as reformas que surgiram daí em diante foram ditadas pela presença do automóvel, o alargamento das ruas, a abertura da Borges de Medeiros e outras".
O primeiro carro de Porto Alegre, da fabricante francesa De Dion-Bouton, propriedade de Januário Greco Foto: Reprodução
Futebol
"Em 1913 já temos futebol expressivo, foi o ano que nasceu o São José e o Esporte Clube Cruzeiro. O conflito Grêmio e Internacional começou muito cedo. Em 1913, o Internacional tem a primeira vitória sobre o Grêmio e aí já começa uma rivalidade forte. Até que, já em 1922, houve um crime num Gre-Nal, um torcedor gremista esfaqueou um atleta do Internacional na Baixada".
O cartaz do primeiro Gre-Nal, em 1909 - Foto: Reprodução
Transporte Coletivo
"O transporte coletivo foi muito importante neste momento. A cidade começa a se expandir, surgem arrabaldes e bairros quando nasce o transporte coletivo. Antes disso, até por faltas de ruas e calçamento, as pessoas se obrigavam a morar no centro histórico. Os bondes puxados a burro começam em 1873, aí se estabelece as primeiras linhas para o Menino Deus, Navegantes, depois o Partenon, bem mais tarde Independência e Floresta, ainda no século 19. Mas isso já permitiu que muita gente morasse nos arrabaldes. Era um negócio, de companhias muito fortes. A Companhia Carris de Ferro Portoalegrense era uma empresa particular, ela depois, quando introduz a tração elétrica, o bonde elétrico, passou a explorar fornecimento de eletricidade, formando a Companhia Força e Luz e Porto Alegrense. Não era mera coincidência. Esse grupo era dono da maior parte dos terrenos à volta da cidade. Projetavam linhas para vender terrenos. Colocaram linhas para a Glória e Teresópolis quando eram desertos. Bondes elétricos surgiram em 1909. Eram quase as mesmas linhas do bonde de tração animal, só mudou a tração. As primeiras linhas do bonde elétrico eram Menino Deus, Glória, Teresópolis e Partenon".
O bonde numa paisagem urbana (início da Rua Marechal Floriano) ainda sem automóveis Foto: Divulgação
Cultura
"O teatro foi muito importante, terminado o século 19. Era o circo para as camadas mais populares e o teatro para a classe média. No início do século 20, o cinema estava começando e foi muito marcante, a cidade teve mais de 60 cinemas de calçada, hoje acho que nem chega a isso nos shoppings. Era um negócio que tinha que fazer fila para entrar. Em 1909, já funcionavam em Porto Alegre, segundo jornais da época, os cinemas Variedades, o Smart Salão, no piso térreo do Grande Hotel e o Recreio Ideal, pioneiro, na Praça da Alfândega. O Teatro Apollo, na Avenida Independência, inaugurou em 1914, com capacidade para 2100 lugares".
O Teatro Apollo, de 1914, com capacidade para até 2100 lugares - Foto: Divulgação
Mercado Público
"Em 1913, foi entregue o segundo piso do Mercado Público, antes era só o térreo com quatro torreões. Em 1912 houve um incêndio que queimou o miolo do mercado, as bancas internas e aí fizeram uma reforma, criando o segundo piso".
O Mercado Público no início do século 20, pouco antes da construção do segundo piso Foto: Divulgação
O porto
"A cidade dependia muito do porto, inclusive para a navegação fluvial e conexões com o interior, já que não havia estradas. Só em 1937 foi criado o Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem (Daer). Até então, não se falava em estradas de rodagem, só caminhos esburacados e embarrados. Então a comunicação era toda por via fluvial. Tinha uma comunicação forte com o rio Taquari, rio Caí, até o Gravataí tinha navegação, o Rio dos Sinos, ia-se para São Leopoldo de barco. O porto foi muito atrasado também. Antes havia trapiches de madeira, sujos, imundos, cheios de ratos, as descrições são terríveis".
O porto da capital gaúcha nos primeiros anos do século 20. À esquerda, o Edifício Malakoff, então o mais alto da cidade - Foto: Porto Alegre Antigo
Outras memórias:
As roupas das festas da alta sociedade eram sofisticadas, como mostra a foto ao lado, de uma foliã no Carnaval de Porto Alegre, em 1913. As pessoas desfilavam de smoking, vestido de gala ou com trajes clássicos de Pierrô e Colombina - Foto: Reprodução
Neste cartão postal de Porto Alegre, de 1913, a Igreja das Dores ao centro - Foto: Reprodução
Outro cartão postal de Porto Alegre, de 1913, mostra a Praça da Alfândega, quando era chamada de praça Senador Florencio. Ao fundo, o bonde elétrico - Foto: Reprodução
O belíssimo prédio, hoje propriedade do Banco Safra, na Rua dos Andradas, foi utilizado pelo cinema Guarani a partir do dia 29 de novembro de 1913, data de sua inauguração. Na década de 1930 trocou de nome para Cinema Rio. Em 1980, o cinema foi vendido ao Banco Safra, que manteve a fachada e reformulou a parte interna para uso da agência. O cinema Guarani foi reinaugurado em 1987 no mezanino do cinema Imperial, mas acabou fechando, definitivamente, em 2005 - Foto: Jesse James Stringhini/Arquivo pessoal