Parece bastante apropriado que esta edição do Fronteiras do Pensamento se encerre com um autor que trabalha tantas e tão diversas noções de fronteiras em sua obra como o moçambicano Mia Couto. O escritor, que também participou da programação de encerramento da Feira do Livro de Porto Alegre neste domingo, vem ao evento nesta segunda-feira para falar das questões mais caras a seu trabalho ao longo de três décadas de carreira: identidade e as diferentes formas de apreender o mundo.
Couto falará ao público do Fronteiras nesta segunda, às 19h30min, no Salão de Atos da UFRGS (os passaportes para o ciclo de conferências estão esgotados). Ele também participará, nesta terça-feira, das 9h às 11h, do último encontro do projeto Fronteiras da Educação, no Auditório Araújo Vianna, também na capital gaúcha.
O moçambicano chega ao Brasil ao mesmo tempo em que seu mais recente romance publicado por aqui, A Confissão da Leoa (Companhia das Letras, 252 páginas), um livro que oferece uma síntese para as questões de fronteiras identitárias que o autor discute em sua obra. Na história, uma aldeia moçambicana passa a ser alvo de ataques de leões que devoram as mulheres locais, fazendo com que um caçador e um escritor sejam enviados ao lugar - um deles para exterminar a ameaça, e outro para documentar a história da caçada.
O que a narrativa demonstra, alternando os pontos de vista do caçador e de uma das jovens moradoras da aldeia, é que as mulheres já viviam em uma comunidade arcaica em que os perigos não vinham necessariamente das feras, e sim da cultura patriarcal circundante.
- Antes de serem devoradas pelos leões, elas já haviam sido devoradas pela vida que viviam, por aquela sociedade - comenta o escritor, que chegou a Porto Alegre na noite da última sexta-feira.
Se houvesse uma boa frase para resumir o pensamento central que atravessa toda a obra de Mia Couto, seria a inutilidade do salvacionismo. Para o escritor, a África não precisaria necessariamente ser salva, apenas descobrir um lugar para si. Um dos exemplos está na forma como o autor aborda outro de seus temas recorrentes: a presença, nos países africanos, da religião cristã levada pelos colonizadores, e como essa fé também foi transformada pelo contato com o continente.
- O que faz a tradição africana mais antiga é digerir a novidade. Ela não é tão frágil como a gente costuma pensar. Ela estabelece um regime de trocas com a religião mais nova, e foi o que fez. Ela cria uma mestiçagem - avalia o autor.
Couto faz da figura do escritor retratado no romance uma divertida representação caricatural de si mesmo. A descrição física do personagem é a mesma do autor: "um homem branco, baixo, de barba e de óculos". E ao longo de sua jornada, o escritor, batizado de Gustavo Regalo, apresenta doses semelhantes de arrogância e de incompreensão do mundo ancestral no qual foi jogado. Esse retrato acaba sendo um comentário intencional sobre o estatuto intelectual do escritor como artista:
- Minha intenção foi desmontar essa imagem estereotipada de escritor como alguém sábio, alguém que escreve porque sabe. Na verdade, escreve-se para saber, e o escritor deste livro precisa deixar de ser tão apegado a quem é e ao que conhece para poder compreender que ele não é o único com direito de narrar aquela história.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado pela Braskem e patrocinado por Unimed Porto Alegre, Natura, Gerdau e Grupo RBS. Conta com a parceria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apoio da Petrobras no módulo educacional e parceria cultural de Unisinos, prefeitura de Porto Alegre e governo do Estado do Rio Grande do Sul.