No dia em que a Feira do Livro homenageia a América Latina, a chegada às livrarias de dois nomes da literatura do Cone Sul mostra a vitalidade literária dos vizinhos. Chegadas ao Brasil ao mesmo tempo, Torquator, do uruguaio Henry Trujillo (Grua), e A Outra Praia (Dublinense), do argentino Gustavo Nielsen, são uma amostra de como bons escritores ainda têm muito a retirar dos sempre maltratados moldes de gênero.
Em edição bilíngue, Torquator, de Trujillo, é uma inquietante história que bebe na fonte da narrativa policial. Um viajante encontra em um ônibus uma jovem introspectiva que, após entabular uma conversa, começa a narrar a história de uma tragédia que se passou com uma amiga. Yolanda, uma jovem operária de fábrica, encara uma vida semelhante ao inferno: é solitária, ríspida e vive em um pardieiro cuidando da mãe idosa e paraplégica. Até que um misterioso personagem assinando Torquator começa a enviar bilhetes e a dar telefonemas prometendo mudar a vida da jovem.
Escrito com uma prosa sincopada, rápida, com muito investimento em diálogos cortantes, é um livro sobre a anomia urbana que leva bastante a sério a famosa formulação de Sartre de que "o inferno são os outros". A complexa personalidade de Yolanda deixa o leitor em dúvida o tempo todo sobre como encarar seus padecimentos e suas reações a eles.
Já A Outra Praia é uma reflexão sobre a natureza do olhar imersa em uma atmosfera de horror fantástico. Fotógrafo, Antonio vive assombrado por uma imprecisa depressão de não saber seu lugar no mundo ou na família que criou com sua mulher Marta e sua filha Victória. Só a fotografia ainda é motivo de satisfação para ele e, certo dia, caminhando pela rua à caça de imagens, topa com uma jovem belíssima que captura seu olhar e sua atenção de fotógrafo a ponto de ele gastar mais de um rolo de filme e registrar uma centena de imagens da mulher. A história se desenvolve pulando da progressiva desagregação doméstica da vida de Antonio para o relacionamento da jovem Lorena com um escritor de livros de terror que, a determinado momento, começa a se imaginar assombrado pelo sobrenatural.
A forma hábil, circular e onírica com que Nielsen vai relacionando todas as tramas e personagens é cativante e dá uma representação ficcional aos conceitos mais correntes da fotografia: metáfora para o olhar e, ao mesmo tempo, engenho maravilhoso capaz de capturar e embaralhar o tempo, preservando a imagem de momentos irrecuperáveis, mas ainda visíveis.
A Outra Praia, de Gustavo Nielsen, tem lançamento nesta sexta às 20h no Memorial do RS.
Torquator, de Henry Trujillo, tem lançamento nesta sexta às 19h na Praça de Autógrafos.