Porto-alegrense criado no Bom Fim, aluno da Escola Estadual Anne Frank e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), habitué da boêmia na juventude e conselheiro do Inter, Geraldo da Camino, 60 anos, marcou época como procurador-geral do Ministério Público de Contas (MPC). À frente do órgão, que se dirige ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) para fiscalizar gastos públicos, se notabilizou por ter cobrado explicações e provocado punições de autoridades de proa.
Conquistou papel decisivo na Operação Rodin, uma das maiores investidas contra a corrupção na história do Rio Grande do Sul. Incomodou tanto que, lá pelas tantas, os críticos fizeram coro para dizer que da Camino exorbitava competências e buscava holofotes.
Pouco mais de 15 anos após ter assumido, em abril de 2008, ele deixa a função de procurador-geral nesta terça-feira (26). A mudança ocorre por força de lei publicada em janeiro de 2023 e cuja aprovação na Assembleia Legislativa foi patrocinada por da Camino, autor da proposta: conforme a nova norma, os procuradores-gerais do MPC terão mandato de dois anos, em vez da permanência indefinida no cargo.
O substituto será o procurador Ângelo Borghetti, que até então atuava como adjunto, por escolha do governador Eduardo Leite. Após alguns meses de mistério, da Camino anunciou que não irá se aposentar. Ele sai da chefia do MPC, mas se manterá no órgão como corregedor-geral, tendo ainda a atribuição de atuar como procurador em uma das câmaras de julgamento do TCE.
É quase unanimidade que ele elevou a rotação do MPC e da própria Corte. Um trabalho que, para muitos observadores, foi iniciado por Cezar Miola, antecessor no cargo de procurador-geral e hoje conselheiro no tribunal, mas aprofundado por da Camino.
— Era um tribunal formal: homologa as contas, homologa com restrições. Com a Constituição de 88 e a atuação de da Camino, o TCE muda de patamar. O procurador começa a ser proativo, a pedir liminares e trancar antes que o gasto aconteça. É discutível se o TCE pode fazer isso, mas a verdade é que, muito pela atuação do da Camino, começou a fazer — afirma o ex-procurador-geral de Justiça Eduardo de Lima Veiga.
Ferramentas fundamentais nesse processo foram as medidas cautelares solicitadas por da Camino aos conselheiros do TCE, que atuam de forma semelhante aos juízes, para suspender gastos públicos sob suspeita.
— O controle passou a ser em tempo real, com foco na licitação que está sendo realizada hoje. Não se espera o prejuízo acontecer. Ele consegue frear no início. Se economiza milhões de reais em vez de esperar o julgamento de contas, quando o ato de corrupção já foi realizado há muito tempo — diz o delegado da Polícia Civil Max Otto Ritter, que atuou no MPC e no TCE entre 1994 e 2013.
Um dos exemplos que o próprio da Camino costuma mencionar é de 2006, antes de assumir como procurador-geral, quando era adjunto. Naquela época, ele atuou em inspeções sobre licitação que pretendia contratar serviços de recolhimento de lixo em Porto Alegre, ao custo de cerca de R$ 400 milhões. Após apontamentos preventivos de possíveis irregularidades, o valor do serviço a ser contratado foi revisado e baixou para a casa dos R$ 300 milhões. Por fim, aquela licitação com aparentes sinais de vício acabou cancelada.
Da Camino se orgulha especialmente de ter apresentado recursos aos conselheiros do TCE e revertido decisões da Corte que mandavam demitir servidores públicos de São Leopoldo e Pelotas admitidos a partir de cotas raciais previstas em leis municipais. E isso ocorreu antes de as reservas de vagas serem pacificadas por legislação e jurisprudência federal.
Mas, ao menos sob o aspecto do estampido político, nada soou tão alto nesses 15 anos quanto a Operação Rodin. Começaram a ser rabiscados na mesa de da Camino, em 2007, no MPC, os primeiros apontamentos que serviram de base para o inquérito da Polícia Federal (PF) que desvelou esquema de corrupção no Detran a partir da contratação de fundações (Fatec e Fundae) ligadas à Universidade de Santa Maria (UFSM) para auxiliar na aplicação do exame da carteira de motorista.
— Muita informação veio do MPC. Ele é muito inteligente, com grande capacidade de trabalhar em equipe. Fazia a integração, não era só conversa fiada. E conseguia dividir os louros das operações — atesta José Antonio Dornelles de Oliveira, ex-superintendente da PF no RS e que esteve entre os cabeças da Rodin como delegado regional de combate ao crime organizado.
Os desvios no Detran foram estimados à época em R$ 90 milhões e envolveram figuras de relevo no pampa, a ponto de o então presidente do TCE, João Luiz Vargas, figurar entre os suspeitos. A política gaúcha estava incandescente, e da Camino fez representações para que Vargas fosse investigado e afastado, até que o próprio decidiu renunciar à presidência do tribunal e se aposentar em 2009.
Sobretudo na política, ninguém é unanimidade e, daqueles anos diligentes de 2008 a 2010, o procurador-geral que se despede colhe as principais críticas.
— Ele foi um bom procurador, mas poderia ter me oportunizado defesa prévia. O embasamento da denúncia tinha situações infundadas. Um saco de penas o vento espalha. Depois, para recolher, nem em outra vida. No meu caso, houve exagero. Talvez a emoção do momento possa ter levado a alguns atos exacerbados. Eu também tive alguns atos exacerbados — reflete Vargas, atualmente prefeito de São Sepé.
No mesmo período, da Camino ingressou com representações para aprofundar investigações sobre a suposta origem suspeita de recursos para a compra de imóveis pela governadora Yeda Crusius e pelo então deputado estadual Luiz Fernando Záchia. Em ambas, o procurador-geral teve os pedidos negados pelos conselheiros do TCE, mas os casos foram rumorosos.
Yeda não atendeu os contatos da reportagem. À época, negava qualquer irregularidade.
— Ele se envolveu em coisas que não eram pertinentes. No governo Yeda, extrapolou e muito suas funções, embevecido pela notoriedade — avalia Záchia.
O ex-deputado entende que apresentou documentação suficiente para esclarecer as denúncias e reclama da decisão de da Camino de tentar ampliar investigações.
— Mostrei recibo, contrato. O que faria um agente público normal? Denúncia improcedente e arquivamento. Ele me fez sangrar politicamente por seis meses. Não morro de amores — protesta Záchia.
Apesar das críticas, da Camino colhe elogios de servidores públicos que estiveram próximos da sua trajetória. Por esses, é definido como audacioso para enfrentar arroubos do poder, mas sem deixar de observar o limite e o interesse público.
— O legado é de coragem na atuação, respeito à Constituição e às leis. Ao mesmo tempo, teve o sentido de ponderação — descreve Miola, conselheiro do TCE desde 2008.
Por vezes, a obsessão em demonstrar equilíbrio era tamanha que da Camino desenvolveu habilidade única de se desvencilhar de temas sensíveis sobre os quais não desejava opinar em público ou na imprensa. Nessas ocasiões, quando questionado e pressionado, sacava uma metáfora qualquer e, quando o interlocutor demonstrava incompreensão, ele entendia como senha para escapulir sem responder.
Nos bastidores e nos ofícios, contudo, ele não deixou de agir quando entendeu necessário, mesmo nos momentos mais delicados.
— Isso não é conhecido, mas desde que começaram os atos antidemocráticos solicitando intervenção militar no Brasil (pós-eleição de 2022), da Camino comunicou várias autoridades ressaltando que aquilo não poderia ser tolerado por serem posturas criminosas. Está no Código Penal. Ele tinha toda razão — afirma Marcos Rolim, vice-diretor da Escola de Gestão e Controle do TCE-RS.
Momentos marcantes da atuação no MPC
- Em 2007, a Operação Rodin tomou forma a partir de relatórios de da Camino. Foi uma das maiores ofensivas do RS e resultou em 29 condenados criminalmente em primeira instância. Em junho de 2022, após julgamento de embargos infringentes e de nulidade no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, restaram 12 condenados na ação penal.
- Após o surgimento de indícios de envolvimento de João Luiz Vargas na fraude do Detran, da Camino representou ao tribunal requerendo afastamento do seu próprio presidente. Os conselheiros mantiveram Vargas no cargo, mas remeteram o caso à Procuradoria-Geral da República. Em 2009, desgastado, Vargas renunciou à presidência do TCE e se aposentou. Na Justiça, ele foi condenado em primeira instância e absolvido em segunda.
- Em 2008, da Camino apresentou ao TCE pedido para ampliar investigações sobre a origem dos recursos para a compra da casa da então governadora Yeda Crusius. Os conselheiros negaram por unanimidade em 2009, promovendo o arquivamento. Yeda negava qualquer irregularidade.
- Entre 2012 e 2013, a partir da atuação de da Camino, o TCE fez inspeção especial sobre a planilha tarifária do transporte coletivo de Porto Alegre. As conclusões apontaram que o bilhete poderia custar R$ 0,26 a menos. O trabalho impôs nova metodologia de cálculo e, na avaliação do procurador-geral, teve "pequena contribuição" para as jornadas de junho.
- Da Camino ingressou, em 2017, com pedido cautelar para suspender a extinção de seis fundações no governo José Ivo Sartori. Ele alegava irregularidades e falta de estudos para a continuidade da prestação dos serviços. A suspensão chegou a ser concedida, mas o TCE, no final, rejeitou o pedido e liberou o encerramento das fundações.
- Em 2022, da Camino sustentou por meses a análise sobre o valor de venda da Corsan. O governo Eduardo Leite leiloou a companhia por R$ 4 bilhões, mas ele queria aprofundar o diagnóstico para verificar se valia mais; falava-se em até R$ 7 bilhões. Uma cautelar obtida pelo procurador-geral segurou o processo por meses, mas o presidente do TCE, Alexandre Postal, concedeu decisão monocrática em julho de 2023 para autorizar a venda.
Trajetória de Geraldo da Camino
- Ingressou no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) como operador de computador em 1983. Chegou a analista de sistemas em 1987.
- Iniciou a Faculdade de Direito, na UFRGS, em 1992. Concluiu o curso em julho de 1996.
- Em março de 1997, após concurso público, tomou posse como procurador do INSS.
- Aprovado em segundo lugar na seleção pública, ingressou, em setembro de 2000, como adjunto de procurador no Ministério Público de Contas (MPC), órgão vinculado ao Tribunal de Contas do RS (TCE-RS).
- Em abril de 2008, assumiu a função de procurador-geral do MPC.
- É mestre e doutor em Direito. Atualmente, faz pesquisa de pós-doutorado.