Pouco depois das 15h de terça-feira (8), a aposentada Elizabet Botelho de Souza, 69 anos, recebeu a encomenda pela qual aguardava ansiosamente na zona norte de Porto Alegre. O pacote de nove quilos envolto em plástico branco foi entregue depois de viajar 1,7 mil quilômetros desde Contagem, em Minas Gerais, até a porta de sua casa de uma peça e banheiro na ocupação Babilônia, no bairro Santa Rosa de Lima. De dentro do embrulho, puxou três quilos de arroz, dois de feijão, massa, açúcar, óleo e farinha de milho doados de forma emergencial pela ONG Ação da Cidadania para aplacar a fome da idosa e dos cinco netos que aparecem quase todo dia para almoçar. A entidade recebeu, ao todo, 2 mil cestas básicas para distribuir pelo Estado nesta semana.
— Se fosse só pra mim, duraria um mês. Mas, como também preciso atender os meus netos, deve durar uns 15 dias. O que eu queria mesmo era voltar a trabalhar, vender meus pastéis. Mas, com a falta de alimento, ou eu como, ou eu faço os pastéis pra vender — conta Elizabet, enquanto guarda os pacotes no armário acima do fogão, a menos de dois passos da cama.
Com o Brasil de volta ao Mapa da Fome elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) devido a situações como essa, um dos eixos anunciados do terceiro mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é promover um esforço redobrado no combate à miséria. A estratégia para aliviar a insegurança alimentar grave de 33 milhões de brasileiros, entre os quais 1,6 milhão de gaúchos, deverá contar com a retomada da articulação com a sociedade civil e o resgate de projetos como o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o de alimentação escolar — iniciativas que foram extintas, modificadas ou perderam recursos de forma drástica nos últimos anos.
Os números sobre famintos no país e no Estado foram apurados pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan). A entidade entrevistou pessoas em 12,7 mil domicílios entre 2021 e 2022.
Uma das medidas defendidas por militantes ligados à área social para amenizar esse cenário, e que deverá ser acatada pelo novo governo, é a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) com a missão de formular e monitorar as políticas públicas do setor. A entidade foi esvaziada nos primeiros dias de janeiro de 2019, quando suas atribuições foram transferidas para o Ministério da Cidadania, e acabou extinta de fato poucos meses depois.
— Um dos primeiros atos do atual governo foi acabar com o Consea. Agora, já há uma mobilização dos conselhos estaduais e um debate com a equipe de transição (da futura gestão) para restabelecimento imediato do conselho nacional para participar da reconstrução das políticas públicas, mas também para fiscalizar. Nós tínhamos acesso a todos os dados — afirma o diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania (fundada pelo falecido sociólogo Herbert de Souza em 1993), Rodrigo Afonso.
A equipe de transição já conta, na área de desenvolvimento social, com nomes como o da senadora e ex-candidata à presidência Simone Tebet (MDB), que comanda o grupo também integrado por outras figuras de referência na área como as ex-ministras de Desenvolvimento Social e Combate à Fome em gestões petistas Tereza Campello (economista), e Márcia Lopes (professora e assistente social) e o deputado estadual André Quintão (PT-MG), que já foi secretário de Desenvolvimento Social de Belo Horizonte (1994-1996) e secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social de Minas Gerais entre 2015 e 2016.
Outro pilar do time dedicado a levar comida à mesa dos brasileiros será a retomada do Bolsa Família em moldes similares ao que havia antes do programa ser substituído pelo Auxílio Brasil. O futuro governo pretende dar, além dos R$ 600 atuais, outros R$ 150 por criança.
Tudo ainda é muito inicial, há ideias gerais, mas certamente programas como o de aquisição de alimentos e o de alimentação escolar deverão voltar com força.
PAULO PIMENTA
Deputado federal
— Tudo ainda é muito inicial, há ideias gerais, mas certamente programas como o de aquisição de alimentos e o de alimentação escolar deverão voltar com força. O combate à fome está no centro do próximo governo — observa o deputado federal Paulo Pimenta (PT).
A situação de Elizabet mostra a dificuldade em debelar a miséria. Como conta com uma aposentadoria, ela alega que não foi aceita na lista para receber o Auxílio Brasil. O problema é que, segundo a idosa, com descontos de empréstimos e outras despesas obrigatórias, restam menos de R$ 400 mensais para alimentar a si e aos netos. Por isso, precisa contar com doações que viajam milhares de quilômetros até sua porta em uma das zonas mais pobres da Capital.
Diferenças entre estudos sobre a miséria
Nas últimas semanas, diferentes estudos têm despertado divergência sobre o tamanho da fome e da miséria no país. Entre eles estão o inquérito produzido pela Rede Penssan que aponta 33 milhões de pessoas com fome no Brasil, e um relatório do Banco Mundial que indica uma redução na pobreza extrema de 5,4% para 1,9% no país entre 2019 e 2020.
As duas análises, porém, não são diretamente comparáveis por uma série de razões. Uma delas é o prazo a que cada estudo se refere: o inquérito da Penssan envolve os anos de 2021 e 2022, enquanto o Banco Mundial analisou um período anterior. Os trabalhos também têm metodologias diferentes: a Penssan entrevistou pessoas em 12,7 mil domicílios, especificamente sobre sua condição alimentar, enquanto o outro relatório fez uma estimativa com base na renda média da população - é considerado em situação de extrema pobreza quem conta com menos de US$ 2,15, ou cerca de R$ 11, por dia.
Programa de aquisição de alimentos perdeu recurso
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que mudou de nome para Alimenta Brasil sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL), é visto como uma medida de alto impacto por atuar em duas pontas: o governo compra produtos de pequenos agricultores e encaminha como doação para quem necessita. O problema é que esse projeto perdeu quase todo recurso em uma década. Reportagem publicada em julho em GZH mostrou um corte de 97% entre 2011 e 2021 — dados atualizados de forma retroativa no portal de transparência da iniciativa apontam, agora, para uma queda de 95% nesse mesmo período (veja no gráfico).
— Esse é um programa que pode ser colocado em prática no curto prazo, porque está pronto, e funcionava muito bem. Tendo verba, pode voltar a operar com agilidade, porque quem tem fome tem pressa — avalia o coordenador-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado (Fetraf-RS), Douglas Cenci.
O Ministério da Cidadania chegou a informar, em julho, que esperava contar com R$ 500 milhões liberados de forma emergencial para este ano. Até o momento, porém, não há registro desse valor na página de monitoramento do projeto. O site indica um total de R$ 748 mil divididos entre Bahia e Rio de Janeiro.
Outra frente da próxima gestão deverá envolver o fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que está há cinco anos sem reajuste nos valores repassados em caráter complementar a Estados e municípios para garantir refeições adequadas aos estudantes — está em R$ 0,36 por dia por aluno nos níveis Fundamental e Médio, por exemplo. Porém, em razão das dificuldades orçamentárias previstas para dar conta desse trabalho de remontagem das políticas públicas, especialistas do setor avaliam que será muito difícil recuperar o nível de investimento na área social e as estruturas necessárias em um prazo curto.
Será preciso reestruturar os programas, encaminhar emendas constitucionais para ver questões como a do teto de gastos. Isso tudo deve se estender ao longo do primeiro ano do novo governo, talvez do segundo também. Até lá, teremos de manter nossa atuação emergencial distribuindo alimentos.
RODRIGO AFONSO
Diretor-executivo da Ação da Cidadania
— Será preciso reestruturar os programas, encaminhar emendas constitucionais para ver questões como a do teto de gastos. Isso tudo deve se estender ao longo do primeiro ano do novo governo, talvez do segundo também. Até lá, teremos de manter nossa atuação emergencial distribuindo alimentos — projeta o diretor-executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo Afonso.
O que diz o Ministério da Cidadania
O ministério foi procurado por GZH por telefone e por e-mail ao longo de uma semana. No último contato telefônico, na tarde de quarta-feira (9), a informação da assessoria de imprensa é de que a demanda sobre a aplicação de recursos por meio de projetos como o Alimenta Brasil seguia sob "análise da área técnica", sem previsão de resposta.
Comitê aponta falta de amparo a indígenas no RS
A estratégia do governo recém-eleito para debelar a fome terá de lidar com dificuldades vivenciadas por grupos específicos de pessoas, como os indígenas que vivem no Rio Grande do Sul. Um ofício elaborado pelo Comitê Gaúcho Contra a Fome em 20 de outubro aponta a existência de 909 famílias "que passam por situação de insegurança alimentar grave" em acampamentos espalhados por diferentes regiões gaúchas, incluindo municípios como Porto Alegre, Viamão, Capela de Santa, Pelotas, Santo Ângelo, Passo Fundo Carazinho e outros.
— Em governos anteriores, havia uma sistemática de entrega de cestas básicas dentro da política de assistência social via Funai (Fundação Nacional do Índio), com vinculação a algum ministério. Quando começou a pandemia, parou a entrega. Por meio de uma ação na Justiça Federal, a entrega foi retomada, mas, depois de junho, parou de novo — afirma o missionário leigo e ex-coordenador da regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Roberto Liebgott.
Procurada por GZH, a Funai não se manifestou até o fechamento desta reportagem. Segundo Liebgott, a justificativa apresentada pela fundação é de que não teria mais alimentos disponíveis para repassar às comunidades. Para atender os indígenas de forma emergencial, a ONG Ação da Cidadania resolveu destinar 500 das 2 mil cestas básicas recebidas na segunda-feira (7) aos indígenas.
— É pouco para o tamanho da demanda, mas é o que conseguimos fazer no momento. A necessidade de alimentos é muito grande — observa a coordenadora do comitê gaúcho da entidade, Melissa Bargmann.
COMO AJUDAR
- Para encaminhar doações ou buscar mais informação sobre a Ação da Cidadania, pode ser acessado neste site