Áudios obtidos pelo Estadão, em posse da CPI da Covid, indicam que o tenente-coronel da reserva do Exército Marcelo Blanco, ex-assessor do Departamento de Logística (DLOG) do Ministério da Saúde, usou a experiência como funcionário da pasta e a boa relação com seu ex-chefe Roberto Dias para abrir caminho a um interessado em vender 400 milhões de doses inexistentes de vacina contra covid-19.
As mensagens com as orientações foram enviadas cerca de 40 dias após o militar deixar o ministério. Os áudios sugerem uma atuação de Blanco em conjunto com Dias, nome indicado pelo centrão para ocupar a diretoria do DLOG no governo de Jair Bolsonaro.
As gravações, mantidas sob sigilo, foram entregues à CPI por Cristiano Alberto Hossri Carvalho, representante da Davati Medical Supply, empresa que propôs vender até 400 milhões de doses da AstraZeneca ao governo. A Davati, no entanto, não representava a farmacêutica e não possuía as doses.
No dia 3 de março, Blanco enviou mensagem de áudio a Carvalho, na qual deu orientações sobre como acessar Dias. O coronel havia sido exonerado em 19 de janeiro.
— Então, me faz uma gentileza, faz em nome do Roberto e manda naquele e-mail dele, do Roberto, né, e do DLOG. São dois e-mails que eu passei para o Dominguetti. Dele, Roberto, institucional, e do próprio departamento institucional. Entendeu? — orientou Blanco, numa referência ao policial militar Luiz Paulo Dominguetti, que também se apresentou como representante da Davati.
O segundo áudio também menciona Dominguetti.
— Cristiano, só uma dúvida aqui. A representação não ia se dar por intermédio do Dominguetti? Ou eu entendi errado? É, porque aí no caso é você representando, né? Nessa carta, né?
Cabo da PM de Minas, Dominguetti tinha aval de Carvalho para negociar vacinas em Brasília. O policial relatou ter ouvido de Dias, então diretor de logística do Ministério da Saúde, pedido de propina de US$ 1 por dose para fechar o acordo.
A mensagem de Blanco é posterior ao jantar em que, segundo Dominguetti, a cobrança de propina teria sido apresentada, em 25 de fevereiro. Foi o coronel quem levou Dominguetti ao local do encontro e estava à mesa quando o pedido de pagamento teria sido feito. Três dias antes do encontro, Blanco abriu a Valorem Consultoria em Gestão Empresarial, representação comercial de medicamentos e insumos, que também atua na área de consultoria empresarial.
A CPI da Covid quer aprofundar as investigações sobre a relação entre Dias e Blanco. O coronel deve prestar depoimento ao colegiado após o recesso parlamentar. A comissão retoma as atividades em agosto e o requerimento do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) para ouvir Blanco já foi aprovado.
Orientação
Blanco disse ao Estadão que não negociou as vacinas e passou apenas uma orientação a Carvalho.
— Eu oriento (que) seja enviado nos e-mails institucionais, justamente para dar uma clareza e uma transparência de um ato lícito. Jamais articulei ou intermediei nada. Eu só orientei: cara, envia nos e-mails institucionais. Porque ali a coisa é formal. Foi tão somente isso — declarou.
No depoimento à CPI, em 15 de julho, Carvalho disse que, logo após o jantar que Dominguetti teve com Blanco e com Dias, "me foi reportado que tinha um pedido de comissionamento extra para o grupo do Blanco". Segundo ele, Blanco o procurou pela primeira vez em 1º de março e disse que gostaria de fazer uma call (ligação) com ele e Dias.
— Aparentemente, o Roberto Dias havia indicado Marcelo Blanco para negociar comigo, porque ele falava em nome do Roberto Dias o tempo todo — afirmou Carvalho.
O coronel, porém, negou que tenha havido pedido de propina e que existisse um "grupo do Blanco".
— Que grupo? Chega a ser hilário um negócio desses. Me colocou como chefe de quadrilha.
Ele disse achar "natural" usar o conhecimento agregado de sua passagem pelo Ministério da Saúde em sua empresa de consultoria empresarial.
— É natural que você possa utilizar isso daí de forma lícita, legal, quando você estiver do lado de fora. Até porque o meu cargo, até por ser um cargo de muito pouca expressão no ministério, não exigia quarentena — afirmou ao Estadão.
Relação
Ao depor na CPI da Covid, Dias desconversou sobre seu vínculo com Blanco.
— É um ex-colega de trabalho — disse.
Para o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), Dias afirmou apenas que conversava com o então colega de trabalho.
— Foi meu assessor, foi meu diretor substituto. Era uma indicação do general (Eduardo) Pazuello e, eventualmente, eu conversava com o coronel Blanco.
Blanco disse que tinha uma relação "muito amistosa" com Dias, "como tinha com todo mundo".
Por meio de nota, a defesa de Dias afirmou que "falas, escritas e/ou posicionamentos do coronel Blanco devem ser a ele questionados". "Desconheço quaisquer desses diálogos com a minha pessoa, eis que nunca representaram um posicionamento meu ou do departamento", diz o comunicado.