O número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, na comparação com o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer. Houve um total de 20 inquéritos entre os anos de 2015 e 2016. Já entre 2019 e 2020, foram 77 investigações. Em relação a outras cinco categorias de inquérito pesquisadas pelo Estadão por meio da Lei de Acesso à Informação - que incluem os principais crimes contra a administração pública -, as apurações baseadas na Lei de Segurança Nacional (LSN) foram, de longe, as que registraram maior aumento.
O uso da LSN é contestado por juristas, e há 23 propostas de alteração protocoladas no Congresso. A redação atual da lei é de 1983, na fase final do regime militar e anterior à Constituição.
A legislação tem sido usada para embasar investigações contra opositores do governo Bolsonaro. Investigações foram abertas após pedidos do ministro da Justiça, André Mendonça, contra pessoas que fizeram críticas e publicaram mensagens contra o presidente.
Há ainda apurações que têm como alvo também bolsonaristas. Dois inquéritos abertos após decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), miram atos antidemocráticos, a divulgação de fake news e ameaças contra membros da Corte - o que levou à prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).
Os casos envolvem tanto a PF quanto as polícias estaduais. Ontem, cinco manifestantes foram detidos pela Polícia Militar em Brasília após estenderem uma faixa com a frase "Bolsonaro Genocida" em frente ao Palácio do Planalto. A PM usou a lei para embasar a ação. A faixa mostrava uma caricatura do presidente com rabo e chifres, transformando uma cruz vermelha - símbolo da saúde - em uma suástica nazista. Segundo a PM, este foi o motivo da prisão.
A LSN estabelece como crime, em seu artigo 26: "Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos."
O presidente da Associação de Delegados da PF, Edvandir Paiva, disse que autoridades estão usando o órgão como um braço para suas brigas políticas. "Eu gostaria que a Polícia Federal pudesse fazer seu trabalho, que é relevante no combate à corrupção, às facções criminosas e ao tráfico de drogas, e não ficasse sendo instrumentalizada em brigas políticas", afirmou Paiva. "Quem dera a PF pudesse se manifestar para dizer que isso está atrapalhando o serviço dela."
Conforme dados da PF, no governo Bolsonaro, o número de inquéritos que miram supostas ameaças à segurança nacional aumentou mais do que investigações contra lavagem de dinheiro e organizações criminosas. Ao mesmo tempo, os delitos contra a administração pública - como fraudes em licitação e peculato - tiveram redução no número de procedimentos nos últimos dois anos.
Em nota, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública observou que a atribuição para investigar esses crimes é da PF. E afirmou que, se as Polícias Civis e Militares estão "atuando sem lastro", é dever dos Ministérios Públicos apurar a "responsabilidades administrativa e penais"
De acordo com Paiva, a maioria dos inquéritos abertos com base na Lei de Segurança Nacional são resultado de pedidos feitos por autoridades, como o Ministério da Justiça, a Procuradoria-Geral da República e o Poder Judiciário. "A PF está atendendo a requisições."
Segundo a advogada Denise Dora, diretora executiva da ONG Artigo 19, todos os índices que medem a liberdade de expressão no País têm caído nos últimos anos. "É uma novidade dos últimos dois anos: uma pessoa emitir opinião e ser processada pela LSN era algo que não estávamos mais convivendo, e é realmente um regresso ao passado."
Para o professor Cláudio Langroiva, especialista em direito processual constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), o uso da LSN é excessivo mesmo em casos em que os investigados extrapolam seus direitos e cometem infrações como injúria ou apologia a crime. Ele lembra que o Código Penal já pune esses delitos, com uma diferença: a pena para difamação na LSN chega a quatro anos, mas é de três meses a um ano pelo Código Penal. Procurado, o Ministério da Justiça não havia se pronunciado até a conclusão desta edição. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.