O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) reagiu com preocupação à decisão de prefeitos gaúchos de adquirir e distribuir massivamente, com prescrição médica, medicamentos para o tratamento precoce da covid-19. A política irá valer para casos suspeitos, de sintomas leves e sem a necessidade de internação.
Além dos prefeitos que decidiram tomar o caminho por conta própria, a Procuradoria da República de Bento Gonçalves, do Ministério Público Federal (MPF), negocia com municípios da Serra a assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) para que eles disponibilizem cargas de hidroxicloroquina, cloroquina e azitromicina em níveis suficientes para serem receitados pelos médicos que optarem por prescrever.
Na avaliação dos prefeitos que aderiram, a política poderá ajudar a conter a evolução de pacientes de coronavírus para o estado grave, com necessidade de internação. Eles acreditam, amparados por pareceres de médicos entusiastas da medida, que a medicação precoce pode estagnar os efeitos da covid-19.
Já o Cremers alerta que não há nenhuma comprovação científica de eficácia. O conselho diz que a prática poderá causar falsa sensação de segurança, levando pessoas a abandonar atitudes de prevenção ao contágio. Isso poderia contribuir para elevar níveis de contaminados. As avaliações são do vice-presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade, que aponta “ingerência na relação do médico com o paciente”. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Qual a avaliação do Cremers sobre o caso das prefeituras gaúchas que decidiram disponibilizar medicação massiva para tratamento precoce de covid-19, incluindo cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina?
Essa distribuição massiva de medicamentos, os quais não têm eficácia comprovada, nos preocupa porque pode gerar na população uma falsa sensação de segurança, no sentido de que eventualmente tenha sido descoberto algum tipo de tratamento curativo para o coronavírus. Infelizmente, até o presente momento, não se tem tratamento curativo. Todos os tratamentos até agora são com medicações sintomáticas (medicamento de acordo com o sintoma apresentado pelo paciente). A partir do momento em que se estabelece uma política de distribuição massiva, pode criar a falsa sensação de segurança na população, o que não se confirma na prática. É uma estratégia sem comprovação e que não funcionou em outros locais do mundo. Pode acabar levando pessoas a não seguirem hábitos de higiene pessoal, o uso da máscara e a lavagem das mãos.
O MPF está negociando TAC com prefeitos da Serra para que eles disponibilizem os medicamentos em quantidade suficiente para os médicos que desejarem receitar. Isso pode levar os médicos a serem pressionados por alguns pacientes a receitarem esses remédios?
Acreditamos que vai ter ingerência na relação do médico com o paciente. Defendemos autonomia do médico sobre a prescrição. E o médico tem autonomia para eventualmente prescrever medicações off-label (quando a indicação médica diverge do que consta na bula), que é o caso de hidroxicloroquina, ivermectina e outras. Não acreditamos que vai ser benéfico para a saúde da população a ingerência de setores da sociedade não técnicos na relação do médico com o paciente. Essas decisões precisam vir por critérios técnicos e científicos, e não através de decretos, portarias ou mandos de qualquer que seja a autoridade.
Prefeitos que estão liderando a adoção da política afirmam que a prescrição sempre passará pela decisão do médico e o consentimento do paciente. Mesmo com essas cláusulas, por que o Cremers considera que poderá haver ingerência?
Na verdade, sempre teve de se manter nas farmácias dos municípios a disponibilidade dessas medicações. São medicações muito antigas, usadas para uma ampla gama de doenças. Acreditamos que não deve ser cerceado o uso de medicações, mas isso vai gerar falsa sensação de segurança. Até o presente momento, não se consegue dar segurança. Não temos um tratamento eficaz até agora para coronavírus.
O Cremers identificou algum local do Brasil em que o tratamento precoce com medicações tenha sido aplicado? A avaliação é de que deu mais certo ou errado?
Outros Estados, principalmente do Nordeste, fizeram uso massivo de medicações e não conseguiram comprovar a diminuição da mortalidade e da hospitalização de pacientes. Alguns Estados com praticamente o dobro da mortalidade do Rio Grande do Sul fizeram uso massivo dessas medicações e isso não comprovou a diminuição de hospitalizações. E tiveram mortalidade muito maior do que a nossa.
O senhor poderia exemplificar que lugares foram esses?
Inúmeras cidades do Maranhão e do Piauí fizeram uso massivo dessas medicações e não comprovaram redução de mortalidade e de internações hospitalares.
O que o Cremers pode fazer no tema? Pode intervir ou não tem atribuição para tanto?
Não temos atribuições para tanto, mas estamos tentando esclarecer a população e as autoridades. Estamos fazendo uma escolha equivocada na estratégia de combate ao coronavírus. Sei que estamos todos ansiosos, todos querem encontrar tratamento, diminuir medidas de isolamento social, mas não acreditamos que isso acontecerá com essas medicações sem eficácia comprovada.