O Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou, nesta quarta-feira (27), o pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para que a investigação do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes seja federalizado. Os ministros da 3ª Seção da Corte entenderam que a apuração do caso deve permanecer no Rio de Janeiro.
Ao solicitar a mudança de jurisdição do caso, a PGR afirmou que a manutenção das apurações pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e pelo Ministério Público daquele estado poderia gerar "desvios e simulações".
Os magistrados do colegiado, no entanto, discordaram da tese. Votaram nesse sentido a relatora, ministra Laurita Vaz, e os ministros Sebastião Reis Jr, Rogério Schietti, Reynaldo Fonseca, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, Jorge Mussi, Felix Fisher, Antônio Saldanha, Joel Parciornik.
Laurita Vaz deu o primeiro voto para manter as apurações no Rio de Janeiro. A magistrada argumentou que a afirmação do Ministério Público Federal de que há suspeita de ligação de policiais da Delegacia de Homicídios fluminense com milicianos envolvidos na morte de Marielle não se sustenta.
— Fica evidenciado que, ao contrário do sugerido, a cada desvio de conduta dos envolvidos na investigação, houve medidas para não haver prejuízo na investigação. O contexto nos autos sugere que o trabalho das investigações estaduais não está limitado ou direcionado para quem quer que seja. Não há conivência ou imobilidade nas autoridades locais na investigação do crime — disse.
A magistrada ainda elogiou o trabalho dos investigadores do caso. "Não há sombra de descaso ou falta de condições pessoais e materiais das autoridades responsáveis pelas investigações. Pelo contrário, constata-se notória dedicação dos profissionais. Desautorizo o pedido de deslocamento para autoridades federais", afirmou.
O ministro Rogério Schietti fez uma defesa da história de militância da ex-vereadora e listou os motivos que acredita terem movido os assassinos.
— Era uma mulher vinda da periferia, negra e lésbica, ingredientes que, em uma cultura patriarcal, misógina e racista, potencializaram a reação de quem se sentiu incomodado, quer pelas denúncias feitas durante o mandato, quer pela postura de mulher intimorata representando minorias e que arrostou milicianos na reiterada e permanente violação de direitos de pessoas que habitam em comunidades — disse.
Para Schietti, o crime, na verdade, foi um "feminicídio político".
O pedido julgado pelo STJ foi feito pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em 16 de setembro de 2019, seu último dia no cargo. A PGR citou que a permanência do inquérito no RJ poderia gerar "desvios e simulações" na apuração do crime ocorrido em 14 de março de 2018.
A família da vereadora é contra a federalização. Caso o pedido fosse aceito, caberia à Justiça Federal, e não mais à Justiça fluminense, julgar o delito. Da mesma forma, a investigação passaria para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.
Ao anunciar o pedido, Dodge disse que, diante da falta de ação dos investigadores do Rio de Janeiro, seria melhor levar o caso para a esfera federal.
— Estamos pedindo a federalização de investigação sobre os mandantes dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes. O que verificamos é que há inércia em identificar quem são os mandantes — assinalou. A PGR alertou, ainda, para o risco de fraude no curso da investigação.
— É imperiosa a federalização para unir, de vez, toda a atividade estatal de apuração do mandante dos assassinatos em tela, evitando que a manutenção do inquérito na Polícia Civil possa gerar o risco de novos desvios e simulações — ressaltou Dodge à época do pedido.
Na sessão desta quarta-feira (27), falou em nome da PGR o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques, que adotou tom mais ameno em relação às críticas às autoridades fluminenses. Jacques argumentou que, na época do crime, o Rio de Janeiro estava sob intervenção federal na área de segurança pública, decretada no início de 2018.
— O caso é de relevante interesse federal porque aconteceu durante a vigência da intervenção e a União se retirou daquele Estado e não entregou este fato esclarecido — disse.
A procuradora-geral protocolou o pedido após ter tido acesso ao inquérito da PF sobre a obstrução do caso Marielle.
A análise do Incidente de Deslocamento de Competência, nome técnico do recurso apresentado por Dodge, acontece na 3ª Seção do STJ. O colegiado é o responsável por processos penais no tribunal e é presidido pelo ministro Nefi Cordeiro.
Os parentes da vereadora são contra a federalização, e o Instituto Marielle lançou até uma campanha para evitar que o caso saia da jurisdição do Rio de Janeiro. No texto, a entidade cita que denúncias recentes apontaram que o presidente Jair Bolsonaro "tentou interferir na PF do RJ para blindar sua família de investigações".
Quando era ministro da Justiça, Sergio Moro chegou a defender a federalização do caso. A afirmação ocorreu após o nome de Bolsonaro ser mencionado em depoimento por um porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde têm casa o presidente e o policial militar aposentado Ronnie Lessa, acusado no crime. Depois, Moro mudou de posição.
O porteiro afirmou em dois depoimentos à Polícia Civil no início de outubro que foi "seu Jair" da casa 58, de Bolsonaro, quem autorizou a entrada do ex-PM Élcio de Queiroz, também acusado no crime, no condomínio no dia do homicídio.
Moro criticou a tentativa de envolvimento de Bolsonaro no caso e disse que seria necessário mudar os responsáveis para que a apuração fosse bem-sucedida.
—Vendo esse novo episódio, em que se busca politizar a investigação indevidamente, a minha avaliação é que o melhor caminho para que possamos ter uma investigação exitosa é a federalização.