A proposta de armar a população brasileira de forma maciça, feita pelo presidente Jair Bolsonaro em reunião ministerial cujo conteúdo foi revelado na sexta-feira (22), contraria princípios constitucionais e ameaça a ordem jurídica do país conforme avaliação de especialistas em Direito e Segurança Pública.
O armamento generalizado, segundo Bolsonaro, seria uma forma de evitar a suposta imposição de uma ditadura e de se contrapor a ações legais adotadas por prefeitos como a restrição à circulação de pessoas durante a pandemia de coronavírus. Constitucionalistas e cientistas sociais ouvidos por GaúchaZH consideram que essa medida representaria o fim de um dos pilares dos Estados modernos que estabelece o monopólio estatal da força.
No encontro ministerial realizado no dia 22 de abril, cuja gravação foi liberada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro declarou (com base em transcrição oficial):
— Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua (...). Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado.
Na sequência, o presidente faz um apelo aos ministros da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e da Justiça, Sergio Moro (que deixaria o governo), para assinarem uma portaria em favor dessa estratégia. No dia seguinte, foi anunciada a ampliação do limite para compra de munições.
Para o professor de Direito Constitucional da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (Fisul) Leonardo Grison, o avanço desta proposta, no contexto de resistir a medidas adotadas legalmente por prefeitos, contraria um dos incisos do artigo 5º da Constituição pelo qual "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".
O plano de Bolsonaro também poderia ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional. O artigo 17 considera crime "tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito", e o 23, "incitar a subversão da ordem política ou social". Grison considera que a realização do desejo presidencial seria ilegal, mas avalia que a manifestação de Bolsonaro, feita em reunião interna que se tornou pública, poderia ser protegida pelo princípio da liberdade de expressão:
— Se esse discurso fosse concretizado, haveria uma infinidade de ilegalidades. Mas fica difícil enquadrar a conversa com os ministros (como crime) pela liberdade de expressão garantida pela Constituição.
Professor titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Fundação do Ministério Público, Eduardo Carrion acredita que o estímulo ao armamento maciço contraria um dos pilares dos Estados modernos e poderia resultar na formação de milícias:
— É uma característica do Estado moderno o "monopólio da força física legítima", conforme célebre caracterização de um dos maiores sociólogos do século passado, Max Weber. Na verdade, o que parece inspirar Sua Excelência é o modelo das milícias, em outros termos, armar grupos que ajam sob o comando do poder central. Outro risco é tentar instrumentalizar as Forças Armadas, o que, obviamente, por sua tradição, não parece possível.
Carrion também acredita que a legalidade da proposta poderia ser questionada:
— Poderá, eventualmente, suscitar-se a inconstitucionalidade da medida. O que se esperaria da cadeira presidencial não é um discurso de beligerância, mas de apaziguamento. Temos uma questão essencial pela frente que é o combate à pandemia.
Plano de Bolsonaro se assemelha a modelo americano
Professor da Escola de Direito da PUCRS, sociólogo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rodrigo Azevedo sustenta que o plano de Bolsonaro coloca em "outro patamar" o debate sobre desarmamento no país:
— Esse debate sempre ocorreu sob o ponto de vista da segurança pública, mas agora vem pelo viés da insurreição armada e pela formação de milícias que se organizariam ao arrepio da lei e da institucionalidade democrática pela qual o Estado detém o monopólio da força, que não pode ser diluído ou modificado. É uma grande ameaça ao Estado de Direito porque, no contexto em que isso foi colocado, a população seria armada para se contrapor à "ditadura" de prefeitos, juízes, e a instituições que representam poderes constitucionalmente legítimos.
Azevedo avalia ainda que a ideia reflete uma "ideologia libertarianista" pela qual o cidadão tem "prerrogativas que não se submetem à força do Estado" e se inspira no modelo americano de tolerar o armamento individual como meio de garantir a liberdade pessoal.
— Isso foi estabelecido em um contexto histórico muito específico, de colonização (dos EUA), no sentido de romper com a tradição do Estado monárquico inglês. É uma ideologia superada frente a todos os avanços do chamado Estado Social para ampliar a capacidade do Estado de intervir na segurança e que leva a maioria dos países a adotar medidas cada vez mais restritivas em relação à autodefesa — observa o sociólogo.
O que disse o presidente
Declaração de Bolsonaro conforme transcrição oficial:
"O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade. Olha, eu tô, como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não da pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais (...). É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado. "