SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A radicalização proposta pelo entorno ideológico do presidente Jair Bolsonaro (PSL) é hoje a maior fonte de preocupação institucional na cúpula das Forças Armadas.
Oficiais-generais da ativa, das três Forças, dizem não haver apoio generalizado a eventuais aventuras repressivas sugeridas pelo grupo.
Os dois mais recentes episódios, envolvendo a publicação do "vídeo das hienas" contra o Supremo Tribunal Federal e a reação à reportagem sobre movimentações de acusados de matar Marielle Franco no condomínio de Bolsonaro, geraram o que um oficial-general definiu como "alta ansiedade".
O alerta vem circulando desde que o bolsonarismo encampou o discurso de que os protestos no Chile e Equador, a volta do peronismo na Argentina e até o derramamento de óleo no Nordeste fazem parte de uma trama da esquerda que precisa ser combatida.
As teorias conspiratórias chegaram não só aos usualmente falantes filhos presidenciais Carlos e Eduardo, mas também ao general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).
Influenciado, Bolsonaro emulou o entorno ideológico e sugeriu que convocaria as Forças Armadas caso houvesse um contágio dos protestos chilenos em ruas brasileiras.
Na sequência, publicou o infame vídeo em que hienas representando o Supremo, a OAB, órgãos de mídia e adversários amorfos como o feminismo, ameaçam o leão personificando o presidente.
Aqui ficou evidente a pressão do grupo ideológico, discípulo do escritor Olavo de Carvalho. Bolsonaro recuou e pediu desculpas ao Supremo, e só a ele, pelo vídeo.
Mas seu assessor internacional, Filipe Martins, redobrou a crítica depois da retratação, e não foi repreendido por isso.
Na noite de terça (29), foi a vez do vereador carioca Carlos (PSC) complicar a narrativa presidencial de que a postagem era problema de terceiros com acesso às suas contas.
No Twitter, o filho quis defender o pai de críticas, mas acabou o contradizendo ao sublinhar que a postagem havia sido feita por Bolsonaro.
Havia um objetivo não declarado, que era o de tirar a atenção sobre as ameaças feitas por Fabrício Queiroz, o antigo faz-tudo do clã que levou a investigações sobre seu último chefe na família, o hoje senador Flávio (PSL-RJ).
Com a revelação do próprio presidente de que já sabia do caso envolvendo a vereadora executada com seu motorista em 2018, feita nesta quarta (30), a tática ficou clara.
Antes de o Jornal Nacional veicular a reportagem sobre o caso Marielle, o deputado Eduardo foi à tribuna da Câmara para sugerir que a história se repetiria caso houvesse protestos ao estilo chileno no Brasil. Foi acusado de defender repressão ditatorial.
O grau máximo de tensão veio com a "live" do presidente. Demonstrando o que mesmo aliados consideraram uma apoplexia desnecessária, ele fez críticas à Rede Globo e acusou o governador Wilson Witzel pelo relato veiculado.
Na manhã desta quarta (30), antes de o Ministério Público derrubar o pilar central da suspeita ao dizer que o porteiro do condomínio de Bolsonaro havia mentido sobre o contato de um acusado da morte de Marielle com a casa do então deputado, houve uma modulação da crise.
Filhos, parlamentares e ministros enfocaram fragilidades do relato, o que com o aval da Promotoria deve garantir a vitória bolsonarista na guerra de versões no momento.
Destoou do processo e manteve o tom conspiratório Heleno. "Tentam criar fato político que desestabilize o país e fomente violentas manifestações, como as que ocorrem em outros países da América Latina", comentou no Twitter.
Há elementos nas Forças Armadas, notadamente no Exército, que compartilham de tal visão. Ela não é majoritária em instâncias como o Alto-Comando da Força terrestre e é francamente minoritária na Marinha e na Força Aérea.
Chamou a atenção o posicionamento espontâneo do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão (PRTB), que descartou a gravidade do episódio --assegurando, ao mesmo tempo, que ele prejudica "o serviço".
Mantido à distância por Bolsonaro e seus filhos, após vários episódios em que se mostrou ostensivamente como ator político mais racional no Planalto, Mourão agora faz um jogo de observação.
Ele não é exatamente querido na ativa do Exército, mas é sempre lembrado em conversas nas quais riscos de ruptura institucionais são mencionados, como "a nossa saída constitucional" --afinal, teve os mesmos votos de Bolsonaro.
A relação dos militares com Bolsonaro, um capitão com histórico de indisciplina reformado, é complexa.
Diversos quadros, especialmente da reserva, migraram para o serviço civil, incluindo 8 de 22 ministros. Após diversas crises com olavistas, a ativa afastou-se preventivamente do governo, enfatizando seu caráter de ente de Estado.
Um dos que integram o governo é o influente ex-comandante do Exército, general Villas Bôas. Mas seu poder é declinante: a postagem pressionando o STF na véspera da votação da questão da prisão em segunda instância surtiu críticas, enquanto medida semelhante em 2018 foi vista como gesto de autoridade.
Parte disso diz respeito a Lula, que poderia sair beneficiado nos dois episódios. Villas Bôas sugeriu risco à paz social, mas o fato é que tanto no governo, quanto na ativa, militares já "precificaram" eventual libertação do petista.
Bolsonaro e seu entorno torcem pela libertação de Lula, pois isso manteria o clima de polarização do país, teoricamente o favorecendo.
Se o ex-presidente for beneficiado por uma revogação da prisão após duas instâncias e solto nas próximas semanas, já há militares perguntando se o bolsonarismo radical não irá unir todas esses fios narrativos para instigar confrontos de rua.
Nesse caso, o artigo 142 da Constituição é claro sobre a manutenção da lei e da ordem recair sobre os militares, sob ordens civis. É uma armadilha algo inescapável, caso venha a ocorrer como profecia autorrealizável.