O cientista político José Álvaro Moisés já foi um entusiasmado signatário do manifesto de criação do PT, cujo ideário reunia em 1980 as utopias da intelectualidade de esquerda, do sindicalismo operário, da igreja progressista e dos camponeses sem-terra.
Quatro décadas depois e há 25 anos desligado da legenda, o hoje coordenador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo é um cético. Desencantado com a falta de identidade dos 35 partidos em atividade no país, Moisés enxerga no centrão o reflexo de uma atividade política voltada para os interesses pessoais dos detentores do poder.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o professor examina como o fisiologismo move as relações espúrias do Congresso com o Planalto e como a omissão da sociedade ajuda a manter o sistema viciado.
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Há semelhança do centrão da constituinte com o de hoje?
A semelhança está no terreno do fisiologismo. Como os partidos não têm definição clara e têm pouca coisa a oferecer aos eleitores, estabelecem relação com o governo de benefícios em troca de apoio. O centrão tinha tintas mais ideológicas na constituinte, mas a característica fisiológica segue.
É possível governar sem o apoio do centrão?
Tem um aspecto que precisa ser considerado. Na maior parte dos países, não só no Brasil, há uma tendência do eleitorado de adotar posições de centro. Isso dá fundamento eleitoral para que partidos sem definição ideológica clara sejam votados pelos eleitores. Se eles formam uma maioria, como no governo atual, é inevitável que tenham enorme influência.
Os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma tinham perfis ideológicos mais definidos e ainda assim precisaram se socorrer do centrão. Não há escapatória?
Nesse presidencialismo de coalizão brasileiro, é muito difícil um presidente ter um partido que alcance mais de 20% dos votos na Câmara. O atual (Michel Temer), por exemplo, é bastante ambíguo politicamente. Então, é natural que vá buscar o apoio da maioria de centro para poder governar.
Mas essa relação só funciona se for clientelista?
Não, mas não é só o centrão que faz. Todo o sistema político está contaminado. Resolver isso depende de uma mudança na cultura política, na qual os eleitores não aceitariam vender seus votos e os políticos não manipulariam recursos para poder atender suas clientelas. Há ainda muito fisiologismo, que é quando os partidos, uma vez obtendo benefícios, aceitam votar qualquer coisa. O próprio PMDB do presidente da República tem perfil bastante fisiológico.
Como fugir do fisiologismo?
Mantendo política mais programática. Mas o PT começou na esquerda e hoje seria difícil dizer que continua lá, inclusive adotou políticas de direita. O PSDB nasceu social-democrata e ao longo do tempo se colocou na centro-direita. O DEM é de direita mas não assume suas posições. Há um quadro em que os partidos fogem da própria identidade deixando terreno para legendas ambíguas. Na política, não existe espaço vazio. PMDB e PSDB, que estariam mais ao centro, poderiam se reformar, definir uma perspectiva programática que galvanizasse a maioria dos eleitores. Como não se definem, sobra enorme espaço para quem quer ocupar lugar na política sem ter grandes definições. Nesse terreno, o centrão cresce.
Algum partido tem um projeto claro para o país?
Num determinado momento, emergiu a Rede. Marina Silva tinha perfil de liderança diferente, histórico mais peculiar do que o próprio Lula. Veio da selva amazônica, demorou a se alfabetizar. Parecia que iria construir um partido alternativo. Hoje, o que significa a Rede na política brasileira? Nada. Não se sabe a posição da Rede sobre economia e os principais problemas do país, sobre como a sociedade enfrentaria as desigualdades, os preconceitos raciais, de gênero. Nada. Dou esse exemplo, mas poderia ser o PSDB, o PT, o DEM. Está difícil saber o que eles pensam, o que propõem. O PSDB acabou de mostrar não saber para onde ir: se fica no governo, se sai, se quer que o Temer seja investigado ou cria barreira de defesa. Diante disso, pergunto: o eleitor vai entender a posição do PSDB?
Hoje os partidos nascem sem identidade. Isso é proposital?
Caso típico é o PSD do Gilberto Kassab. Quando ele lançou o partido, disse que não era de direita, nem de esquerda, nem de centro. Você nunca sabe bem, além de buscar cargos, ministérios, o que o partido defende. Ele ter sido ministro da Dilma e depois do Temer é prova de que esse terreno indefinido é um desastre à democracia.
A reforma política em discussão no Congresso pode sanar essa fragmentação partidária, ou os parlamentares estão mais interessados em reeleição?
Os políticos estão fazendo a reforma que os interessa. Mas por que isso está só nas mãos deles? Há omissão da sociedade. Estamos vivendo a mais grave crise desde o final do regime militar, provavelmente é a pior do período republicano. Não temos lideranças capazes de enfrentá-la. Faz sentido essa morosidade com que a sociedade reage? Poderia ser um momento de refundação. Líderes sociais, de universidades, associações, precisam se envolver, propor fórmulas alternativas e novos nomes para a política. Tem alguns movimentos de jovens fazendo isso. É o único sinal de reação, mas ainda pequeno.
O senhor é otimista com relação às eleições de 2018?
Com essas coisas que disse, você acha que posso ser otimista?
A sociedade se mobilizou em 2013, depois nas passeatas pelo impeachment. Mais tarde, quando surgiram denúncias graves de corrupção, ninguém mais foi às ruas. O que explica?
As manifestações de 2013 criaram grande expectativa de resposta, que não veio. O impeachment representava também uma retomada da política. Mas foi pífia. Havia agenda de reformas importantes, mas a vida política piorou. O desempenho deficitário do Congresso e dos políticos cansou os cidadãos. A sociedade está sentindo que não adianta sair de casa porque as respostas não vêm.