Ele costurou um dos acordos de delação mais complexos da Operação Lava-Jato. O criminalista gaúcho Luciano Feldens é responsável pela defesa do chamado príncipe dos empreiteiros, o executivo Marcelo Odebrecht. Nos últimos oito meses, ao lado da mulher e sócia Débora Poeta, o advogado esteve na carceragem da Polícia Federal de Curitiba pelo menos uma vez por semana para conversar com o empresário e fechar a negociação com o Ministério Público Federal. O resultado é uma delação que atinge o coração da República.
– A Lava-Jato tem o real potencial de estimular mudanças para aperfeiçoar a relação entre o público e o privado no Brasil. Esse poderá ser o seu maior legado – prevê o advogado.
Em sua primeira entrevista desde que assumiu a defesa de Marcelo, em julho de 2016, Feldens falou com exclusividade para Zero Hora. Aos 46 anos, o jurista é um veterano em casos de colarinho branco com grande repercussão. Foi advogado do banqueiro Daniel Dantas, na Operação Satiagraha, e do marqueteiro Duda Mendonça, absolvido no julgamento do mensalão. Na Lava-Jato, representa a empreiteira Carioca e Marcelo Odebrecht – os demais 77 executivos da construtora contam com outros defensores.
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Ex-procurador da República, doutor em Direito Constitucional, Feldens conhece os dois lados do balcão. Professor de graduação e pós-graduação da PUCRS, se divide entre os escritórios de Porto Alegre e Brasília, mas também atua em São Paulo e no Rio de Janeiro. Foi na ampla sala de reuniões da banca localizada em uma casa à beira do Lago Paranoá que ele recebeu Zero Hora. Nesta conversa de quase duas horas, falou sobre delações, financiamento de campanha, lavagem de dinheiro e os rumos da Lava-Jato.
Acompanhe os principais trechos da conversa:
Por que demorou tanto pra sair o acordo de delação dos executivos da Odebrecht?
Já se tornou público que foi um dos maiores acordos do mundo no âmbito do direito penal empresarial. Como regra, cada colaborador tem uma negociação individualizada com o Ministério Público. São várias rodadas de discussão. Esse tempo foi necessário.
A delação de Marcelo Odebrecht é tão explosiva quanto os políticos temem?
Não posso me manifestar sobre o conteúdo do acordo.
O empresário firmou um bom acordo de delação? Quando ele vai deixar a prisão?
Todos os acordos são firmados a partir de situações pré-estabelecidas. Consideradas essas circunstâncias, foi um acordo razoável. Ele (Marcelo) está preso desde junho de 2015 e, no máximo, até o final do ano deverá estar retornando ao convívio familiar.
A Lava-Jato já dura três anos. A operação pode se alongar por muito tempo?
A Lava-Jato já rendeu inúmeras outras investigações que andam autonomamente. E, dessas, sairão tantas outras. Estimo que teremos consequências diretas ou indiretas dessa operação por, no mínimo, 10 anos.
Era promíscua a relação entre agentes políticos e empresários?
O trato entre público e privado no Brasil era constituído por uma relação de confiança em muitos casos azeitada pelo dinheiro. Não bastava ter uma estrutura empresarial competente, você deveria lidar com órgãos do Estado que atuavam sob o manto da corrupção. A Petrobras talvez seja o exemplo mais evidente.
A partir das revelações da empreiteira, haverá uma renovação na política brasileira?
Acredito que sim, não só na política como também no setor privado, mas desde que o poder público faça a sua contraparte. Precisa haver uma maior eficiência na prestação do serviço e fiscalização do funcionário que pede propina. Como foi se estabelecer um ambiente de corrupção daquelas proporções na Petrobras? Onde estavam os controles administrativos internos? É por aqui que passa a reformulação.
Críticos dizem que a Lava-Jato banalizou as delações. Qual a sua posição?
Se banalização for o uso arbitrário do poder, eu diria que não. Ainda não se discutiu isso com profundidade, mas se a lei estipula que a colaboração com a Justiça é um direito do investigado, arbitrariedade haveria se o Ministério Público se recusasse a realizar um acordo com o investigado X ou Y, sem maiores razões para isso. Partindo do pressuposto de que as colaborações tenham sido voluntárias, não posso dizer que o Ministério Público, ao respeitar um direito, "banalizou" as delações.
A jurisprudência de cumprir pena a partir de condenação em segunda instância contribuiu para as dezenas de delações da Lava-Jato?
Acho equivocada essa decisão, pois certamente várias pessoas cumprirão pena injustamente, pois teriam ou terão sua condenação revertida nas instâncias superiores. É para isso, afinal, que existem instâncias superiores: para revisar a decisão dos tribunais de segunda instância. Mas, inegavelmente, essa alteração na jurisprudência incentivou colaborações. Isso pode ser colocado em termos lógicos: se reduzem seu oxigênio, fica reduzido seu espaço de sobrevivência.
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A forma de fazer a defesa mudou com as delações?
De certo modo, sim. Ao colaborar, o investigado abre mão de um direito que em outras circunstâncias ele poderia utilizar, o direito a ficar em silêncio e, em consequência, de não revelar o que sabe sobre determinado fato. Às vezes, utilizamos esse direito para ter acesso ao processo antes de qualquer declaração. No caso de investigados que efetivamente têm o que contribuir com a Justiça, a colaboração passou a ser uma opção de defesa. A colaboração é um novo remédio colocado na prateleira, que passa a estar disponível aos pacientes. É um remédio tarja preta, que deve ser criteriosamente recomendado. Por isso, a decisão precisa ser do paciente, sempre bem informado sobre seus efeitos colaterais.
A tese do Ministério Público sobre doações oficiais que lavaram dinheiro está correta?
Depende do motivo do pagamento. Pode existir caixa 1 sendo pagamento de propina, e caixa 2 não sendo propina. Qual a contrapartida? Eu posso ter uma contrapartida de propina utilizando meu limite de caixa 1, ao mesmo tempo em que posso ter estourado meu limite de doação eleitoral e fazer uma contribuição com caixa 2, sem que aquilo represente uma contrapartida. Nem todo caixa 2 é corrupção, é um crime fiscal.
Nos julgamentos, será preciso demonstrar a contrapartida?
Você precisa ter provas claras. É ter um depoimento nesse sentido, é ter uma eventual testemunha, um documento para identificar qual o ato que vem em contrapartida ao pagamento ao agente político. A análise no Judiciário deverá ser feita caso a caso.
Segue em discussão nos bastidores do Congresso a tentativa de anistiar o caixa 2. Teria impacto na Lava-Jato?
A anistia criminal é um apagador de determinados fatos que ocorreram sob a égide de determinada lei. Você pode anistiar o caixa 2, mas você não anistiou o crime de corrupção e nem a lavagem. Então, uma eventual anistia ao caixa 2 não impede investigações sobre o pagamento de propina. Tudo depende da razão determinante do pagamento. A anistia ao caixa 2 não apaga eventual corrupção.
Para a defesa, foi boa a decisão de homologar as delações, após a morte do relator Teori Zavascki, sem levantar o sigilo?
Para a defesa é boa toda a decisão que tenha amparo legal. Agora, o que é inadmissível é a violação de sigilo em processos desse nível de sensibilidade, como ocorreu após a audiência de Marcelo Odebrecht no TSE. Após quatro horas de audiência, ao sair do prédio da Justiça já recebi notícias com o suposto conteúdo do depoimento.
A Lava-Jato chegou há mais de dois anos ao STF e não temos nenhum condenado. Há risco de prescrições nos casos de pessoas com prerrogativa de foro?
Para os crimes praticados a partir de maio de 2010, não. Nessa data houve uma alteração na lei penal que torna de difícil possibilidade a ocorrência da prescrição para casos praticados a partir de sua entrada em vigor. Um crime de lavagem de dinheiro, por exemplo, passou a prescrever em 16 anos. É tempo suficiente para que uma denúncia seja proposta pelo Ministério Público e apreciada pelo STF.
Há um novo perfil de juízes e procuradores no Brasil?
Há um novo momento para o exercício do Poder Judiciário e do Ministério Público. A Constituição é a mesma, com suas possibilidades e limites da atuação dos poderes públicos. Acredito que o êxito das investigações da Lava-Jato esteja, em boa medida, na formação de um grupo de procuradores que, ao entusiasmo, aliou a experiência dos mais antigos. A fórmula concebida pela força-tarefa de um acordo de leniência para proteger funcionários de menor escalão ou de menor participação nos fatos foi decisiva para a obtenção das provas.
O senhor também atuou no julgamento do mensalão. Qual a diferença entre esse caso e a Lava-Jato?
Embora ambos tenham envolvido corrupção e trânsito de caixa 2, são casos diferentes. O mensalão foi inédito em diversos aspectos. Pessoas com poder político-econômico eram pela primeira vez julgadas pelo STF, com transmissão ao vivo para todo o país, colocando face a face o procurador-geral da República e o advogado. A Lava-Jato apresentou outros instrumentos de investigação, como as prisões preventivas e os acordos de colaboração, criando um ambiente para uma nova relação entre advocacia e Ministério Público.
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Ainda é possível manter contas secretas no Exterior? Ou o caso Eduardo Cunha deixou claro que é melhor repatriar os valores?
Ficou muito mais difícil e menos justificável manter contas não declaradas no Exterior. A Suíça, por exemplo, já não tolera contas de brasileiros que não tenham declarado os recursos às autoridades brasileiras.
O programa de repatriação, na forma como foi aprovado e executado, deixou margem para lavar dinheiro? O empresário e ex-deputado federal Ronaldo Cezar Coelho admitiu que repatriou recursos que seriam de caixa 2.
Não conheço a situação específica, mas é possível que pessoas tenham procurado esquentar dinheiro por meio da adesão ao programa de regularização fiscal. Porém, se essas pessoas detinham recursos de origem ilícita, estarão sujeitas a uma investigação e processo criminal.
O senhor tem algum destaque em relação às 10 medidas contra a corrupção?
O Ministério Público amadureceu muito nos últimos anos, porém, no que diz respeito às pretendidas reformas legislativas, precisamos refletir melhor. Não é admissível a proposta que busca autorizar o Ministério Público a se valer de provas obtidas ilicitamente para condenar pessoas.
O senhor foi procurador por muitos anos e decidiu dar um novo rumo na carreira, advogando. Houve e ainda há reação de antigos colegas de MPF?
Foi uma decisão de vida, como tantas outras. Tive uma atuação destacada no MPF, inclusive no estímulo de uma atuação mais intensa no controle da chamada criminalidade de colarinho branco. Talvez por isso, na época houve quem estranhasse a decisão, mas recebi um apoio massivo do meu círculo de colegas e, sobretudo, do então procurador-geral da República, Antonio Fernando. Por ter sido procurador da área de lavagem de dinheiro em Porto Alegre, tive de sair do Rio Grande do Sul por três anos para cumprir a quarentena prevista na Constituição. E isso acabou sendo importante para minha carreira como advogado.