Considerado um dos maiores especialistas em direito eleitoral do país, o ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, Torquato Jardim, é a favor da volta do financiamento privado de campanha. Há cinco meses no comando da antiga Controladoria-Geral da União, ele segue à distância os impasses das eleições, mas sabe que não pode se descolar do assunto, já que entre as missões do ministério estão a defesa do patrimônio público, o acompanhamento da aplicação da verba federal dos municípios e o combate à corrupção.
– Não gosto de proibição, eu gosto de fiscalização – afirma o carioca de 66 anos.
Filho e neto de militares, ex-coroinha e torcedor do Flamengo, Jardim foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral e tem amplo trânsito nas cortes em Brasília. Entrou no governo Temer no lugar de Fabiano Silveira, afastado após ser alvo das gravações do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, um dos delatores da Lava-Jato.
Nesta entrevista a ZH, em seu gabinete em Brasília, ele criticou os vazamentos da Operação Lava-Jato e defendeu a regulamentação da atividade de lobista. Em breve, deverá enviar ao presidente Michel Temer uma proposta de decreto para que o lobby seja feito às claras. O texto será detalhado, até com o valor do presente que o servidor público poderá aceitar.
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Como o senhor avalia a primeira eleição sem financiamento empresarial das campanhas? A limitação é a melhor saída para evitar a corrupção eleitoral?
É preciso conhecer as prestações de contas, completar as investigações que estão em curso para ver se houve algum mecanismo ilícito de substituição à doação privada. Mas você tem dados interessantes. Quase todos os candidatos à reeleição ganharam. Então, se de um lado o dinheiro da empresa privada era acusado de criar um desequilíbrio econômico que levava à corrupção e à fraude, temos que estudar o fenômeno da reeleição, porque dispor da máquina de governo pode, eventualmente, ter criado de forma mais exacerbada outro tipo de desequilíbrio. Havia sempre a discussão entre dois desequilíbrios: atuação da empresa privada e o candidato da reeleição, dono da máquina. Agora, você tirou um pé da equação.
O senhor é a favor da volta do financiamento privado de campanha?
A minha divergência com o tema é de natureza filosófica. Não gosto da proibição, eu gosto da fiscalização. O melhor desinfetante que há é a luz do sol. A empresa privada é, no sentido do direito liberal, pessoa de direito político. Ela é "eleitora", porque é a empresa privada que gera emprego, que concebe tecnologia, que força a distribuição da renda. No sistema político brasileiro, onde há, a partir da Constituição, uma concentração muito grande de poder dos chefes do Executivo, da presença forte do Estado na economia, a pessoa jurídica é afetada pela política pública, pela lei de orçamento, pelos projetos do Executivo. Investidores e empregados dependem da existência da empresa, então, ela não pode ficar fora do jogo político.
Então, as empresas não podem ficar de fora do financiamento? E o combate à corrupção?
A empresa não pode ficar fora. Limitar a doação? Muito bem. Tornar mais rigoroso o controle da doação? Muito bem. Criminalizar a doação ilegal? Tudo bem. Cassar mandatos obtidos mediante abuso econômico? Muito bem. Mas a incapacidade de controlar a consequência do ato ilícito não deve tornar proibida a doação.
Nas eleições, o alto índice de brancos, nulos e abstenções lhe surpreendeu?
Muito, porque está muito acima da linha histórica. Mostra uma frustração, uma zanga popular, mas não quer dizer que seja culpa de partido. Há muito desemprego, há muita notícia de Lava-Jato. Até pessoas politicamente engajadas deixaram de votar.
Os ex-presidentes Lula e Dilma optaram por não votar...
Sim, a começar por dois ex-presidentes da República que não foram votar, o que para mim é lamentável. Péssimo exemplo. Tem que ter presença, tem que ter voto, tem que participar. Acho que foi um sentimento geral de desânimo, frustração, a vida está difícil. Isso também tem que estudar. Tem que ver se não houve picos em cidades onde há maior desemprego ou eleitores mais informados. Estudar quem foram os candidatos. No Rio, por exemplo, foram dois candidatos que dividiram muito a cidade, por razões ideológicas, políticas, religiosas.
Voltou à Câmara a discussão da criminalização do caixa 2. A lei é necessária?
A corrupção é crime eleitoral, (artigo) 299 do Código Eleitoral. As medidas procuram aperfeiçoar o sistema, torná-lo mais rígido para desequilibrar a relação custo-benefício de agir de outra forma. Parte da premissa de que o direito resolve, de que a sanção legal maior inibe o crime.
Valeria para o caixa 2, que parece uma instituição no Brasil?
É preciso ver com cuidado. Há o caixa 2 derivado da propina, que é crime, porque a corrupção e a propina já são crimes. Mas há o caixa 2 que sai de dinheiro real devidamente ganho, este não precisa ser crime. É essa distinção que o Congresso tenta fazer. Uma coisa é receber caixa 2 do propinoduto, outra coisa é o caixa 2 que é dinheiro da empresa. E isso pode não ser crime porque foi o uso indevido, um ato ilícito, aí você aplica uma multa. O que não implica que não seja declarado inelegível quem receber e quem doou.
O senhor é a favor das 10 Medidas Contra a Corrupção, proposta que tramita na Câmara?
Pode ser útil, ter boas consequências. Agora, há partes que são muito discutíveis, como o teste de integridade do servidor público, ou tornar lícito o uso de provas obtidas ilicitamente. Há pontos controvertidos que podem ser úteis em alguns casos concretos, mas que quando você pensa no efeito geral da lei são discutíveis. É bom que haja o debate.
O senhor defende a regulamentação do lobby?
Sim, no âmbito do poder Executivo. No poder Judiciário, você sabe quem é quem, o advogado traz a procuração. O Legislativo tem seus próprios meios. No Executivo, temos que tentar a representação conhecida. Mensalão e Lava-Jato estão aí a revelar a necessidade. Algumas premissas são importantes. Você tem que qualificar o lobista, e isso não é prejudicar o trabalho dele. É tornar conhecido quem representa quem ou o quê, e perante quem. Então, uma das hipóteses que foram feitas dias atrás em São Paulo, sugere o seguinte: quem pedir a audiência apresenta uma procuração para o negócio. É só para saber quem vem fazer o quê, com quem.
Isso depende do Congresso?
Não. É um regulamento do Executivo, um decreto.
E vai sair esse decreto?
Espero que sim, vamos enviar para o Planalto em algum momento nos próximos três ou quatro meses. Também não me imponho prazo.
Por que é tão difícil regularizar o lobby?
É um padrão cultural. Nós temos uma cultura de sombras. É preciso descortinar. E não é difícil. A maior dificuldade de eficácia da regulamentação do lobby é a conduta do servidor público. O problema não está no setor privado, ao contrário. O setor privado quer a regulamentação. Querem ser separados do joio, tem trigo bom na seara. Tem que afastar o joio. Aqui em Brasília, eu faço um desafio: chegue para qualquer pessoa e diga "você conhece o fulano?". O máximo que ele vai dizer é "pessoalmente não, mas tenho um grande amigo que conhece". Está te vendendo um serviço, esse é um lobista que está na sombra.
Por que três ou quatro meses de prazo? É tão difícil fazer o texto do decreto?
Tem muitas nuances, por exemplo. Presentes, o que nós vamos definir como presentes?
Pode ou não pode receber?
Poder, pode, é da natureza humana. Como é que nós vamos definir? Qual o valor? O diretor jurídico do Banco do Brasil veio aqui, meu colega advogado, e me deu uma canetinha. Brinquei com ele: quanto é que custa? Se é mais de R$ 100, vai para o patrimônio público? Claro que custou menos. Quando o presidente Ronald Reagan veio ao Brasil, o presidente Figueiredo deu um cavalo a ele, mas não podia entrar nos Estados Unidos por causa do valor. Não sei por qual mecanismo, acabou que o bicho foi pra lá.
Não existe regulamentação sobre presentes ao servidor público?
Existe. O valor é de até R$ 100.
Em tese, é bem limitado.
Não pode nem perfume de freeshop! É complicado. Também precisamos definir a forma de representação da questão legal. Até que ponto na escala hierárquica, a audiência tem que ser pública? Você tem ministro de Estado, secretário-executivo, departamento, divisão, coordenação, superintendência. Quem é que vai ter que abrir
A regulamentação do lobby ficou mais urgente depois da Lava-Jato?
Esse assunto está correndo há muito tempo. Mas, para mim, a principal motivação é que muitos lobistas querem.
E o presidente da República? O senhor tem apoio dele?
Ele não disse nada em contrário até agora (risos). Quando o presidente Michel Temer me convidou e falou da transparência ele me disse: "Olha, você vai dar conteúdo substantivo para a transparência". Temos trabalho histórico de auditoria, estão surgindo outros estudos, esse de lobby e também sobre os escritórios de advocacia. Até o fim desse ano, vencerão contratos de serviços advocatícios da administração federal indireta, empresas públicas e sociedades civis, somando R$ 2,2 bilhões. Não estou duvidando de ninguém, não estou presumindo nada ruim, mas quero saber por que uma instituição com 900, 700 ou 500 advogados precisa gastar de R$ 100 milhões a R$ 900 milhões ao ano, contratando jurídico terceirizado. É essa a função do ministério, cobrar razoabilidade do gasto do dinheiro público.
Quando o senhor terá uma resposta das empresas públicas?
Prefiro não me comprometer com prazos.
Como estão os processos de acordo de leniência com as empresas da Lava-Jato?
São 19 processos, 12 aguardam as decisões finais em Curitiba. Não posso ficar citando os nomes das empresas. Cinco empresas não estavam atendendo aos pedidos de informação, o ministério enviou uma advertência. Dessas, duas o próprio Ministério Público Federal pediu para esperar – que coisas novas podem acontecer em Curitiba –, duas trouxeram os documentos necessários e uma mandei encerrar porque não trouxe os documentos.
É possível revelar o nome dessa empresa que ficou de fora?
Está tudo fechado na lei. E, com isso, nós reabrimos um outro processo que é o PAR, o Processo Administrativo de Responsabilização. Deste processo, pode derivar uma declaração de inidoneidade.
Como o país sairá da Lava-Jato?
Isso tens que perguntar para os amigos de Curitiba. Mas vou citar o juiz Sergio Moro: "A Lava-Jato é o começo". Eu definiria a Lava-Jato assim: é um marco civilizatório que traz uma esperança muito grande, muito rara, de uma possibilidade de mudança na ética pública brasileira.
O senhor concorda com esses comentários de que há abusos na Lava-Jato?
A estatística é toda a favor do quinteto de Curitiba. Quase 200 habeas corpus, nenhum ou um foi concedido parcialmente. O índice de acerto é notável pela própria fiscalização que fazem o Tribunal Regional Federal de Porto Alegre e os outros. Todo ato administrativo fica exposto a críticas de quem não teve o seu interesse atendido. Faz parte da sinfonia.
Ministros do atual governo foram citados em delações. Na sua avaliação, eles têm condições de continuar nas suas atividades ou deveriam se afastar até que os casos sejam esclarecidos?
Uma coisa lamentável no Brasil, hoje, é que a presunção de inocência, que é fundamental na civilização humana, foi abandonada em favor da presunção de veracidade do delator. Hoje, o delator fala qualquer coisa, escondido por baixo do pano, entrega para a imprensa e vira herói. Tenho muito medo disso, porque a conquista cultural de presunção de inocência é uma coisa preciosa. Até em outros países, em outros sistemas, se a delação é tornada pública, ela é nula. A delação é um processo secreto, interno, próprio do processo judicial. Vai se tornar público quando houver a sentença. E o Brasil está vivendo essa questão que abala o processo político. Qual seria o resultado da eleição municipal se essas delações não fossem públicas? Ninguém sabe. Quanto de votos contra certos partidos decorreu dessa frustração, dessa zanga cívica pelo que foi antecipadamente lançado do delator? Eu vejo isso com muita preocupação.
Na sua avaliação, então, há um abuso nos vazamentos?
O abuso de vazamentos é inegável. Não sou advogado de nenhum deles, estou vendo de fora. Não estou repetindo o que dizem meus colegas e amigos que estão atuando nesses processos, é só o que eu vejo em jornais e revistas. Colocaram o magistrado do Supremo Tribunal Federal (Dias Toffoli) numa capa, daí você lia a matéria e não tinha nada na matéria. Renunciar à presunção de inocência é um perigo à liberdade individual. E adotar a presunção de veracidade do criminoso confesso, porque o delator é um criminoso confesso, eu acho muito perigoso.
A divulgação das informações só ocorreria quando os casos chegassem ao fim?
Eu acho que a delação só poderia ser pública quando houvesse sentença.
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NOMEAÇÃO POLÊMICA
Logo que assumiu o ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, Torquato Jardim se envolveu em uma polêmica por ter nomeado para a chefia e gabinete uma ex-sócia de um escritório de advocacia, a advogada Lilian Claessen. Não há irregularidade na escolha, mas ele foi questionado pelo sindicato de funcionários do ministério. O assunto foi parar na Comissão de Ética e acabou arquivado. A assessoria do ministro diz que “é um cargo de livre provimento e que os dois encerraram as atividades do escritório para aceitar o convite do presidente Michel Temer para assumir a pasta”.