Mantendo um discurso firme contra o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff – o qual denomina "golpe brando" –, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980 pelo enfrentamento à ditadura argentina, palestrou para uma sala lotada no Plenarinho da Assembleia Legislativa, na manhã desta segunda-feira, sobre os desafios da democracia e os cenários políticos que se desenham no país.
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Depois de se reunir com Dilma na última semana e gerar polêmica ao usar a expressão "possível golpe de Estado" na tribuna do Senado Federal, Pérez já havia reforçado seu posicionamento político em terras gaúchas no último domingo, ao participar do Ato Unificado do 1º de Maio, no Parque da Redenção. Em viagem ao Brasil a convite de movimentos sociais, o ativista argentino salientou que viera à Capital dar um "abraço solidário" aos participantes do evento organizado pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo sem Medo.
Nesta segunda-feira, falou por pouco mais de uma hora para um público de cerca de cem pessoas, entre elas líderes de sindicatos e de movimentos sociais, além de deputados do PT e de legendas aliadas. Antes de palestrar, o argentino, que preside atualmente a fundação do Servicio Paz y Justicia en América Latina (SERPAJ-AL), conversou com Zero Hora sobre a política latino-americana e as reações de sua fala no Senado.
Confira os principais trechos da entrevista:
O senhor já afirmou em mais de uma ocasião que a esquerda na América Latina necessita de uma autocrítica. Que tipo de reflexão é necessária neste momento?
As esquerdas devem começar a rever muitas coisas e a se integrar na diversidade, e não na uniformidade. Caso contrário, perdem força. Existem esquerdas muito sectárias, seria muito especificar quais, mas em termos gerais é assim, e por isso é preciso ter uma maior amplitude na diversidade. Vejo que as esquerdas se esqueceram de duas operações matemáticas básicas: somar e multiplicar. Elas precisam rever posições que muitas vezes são muito fechadas, elas precisam se abrir e ver que é possível chegar a consensos, muitas vezes através das diferenças, e não pelos acordos. É a isso que me refiro, em rever as políticas. E isso ocorre no Brasil, na Argentina, em todos os lugares.
O seu discurso no plenário do Senado, em que mencionou um "possível golpe de Estado", gerou polêmica e causou indignação da oposição. Em discursos anteriores, o senhor relacionou o processo em andamento no Brasil com o ocorrido em países como Honduras e Paraguai. De que maneira eles se assemelham e como vê essa repercussão negativa do seu discurso?
O que ocorre no Brasil é o mesmo que foi aplicado nestes países. Lá foram experiências piloto, experimentações de golpes de Estado brandos. Como outras tentativas que ocorreram no Equador e Venezuela. Tivemos algumas tentativas mais violentas, como na Bolívia. Temos que tratar de ver a questão desta forma para que os golpes não prosperem aqui, pois estão utilizando a mesma metodologia. Isso preocupa, porque o Brasil é um país livre, e um golpe aqui terá repercussões no resto do mundo. No caso do processo contra a presidente Dilma, ela utilizou um mesmo procedimento que utilizaram outros governantes que a precederam, então atrás de tudo isso há questões políticas para tirar ela do governo e privatizar empresas estatais, reduzir o trabalho social. Isso é a "recolonização" do continente latino-americano. Essa é a leitura mais profunda que temos que fazer do que ocorre aqui.
Temos, no Brasil, uma crise política sem precedentes, na qual a presidente perdeu muita popularidade, assim como o apoio de muitos partidos que antes eram aliados. Como o senhor imagina que será possível governar caso Dilma permaneça no governo?
Trabalhando com organizações sociais, sindicatos, movimentos populares e indígenas. É preciso levar em conta que as democracias não são dadas de presente, elas são construídas em um processo de participação social. Sempre digo que sou um pessimista esperançoso. Nos encontramos com sérios problemas, mas também é possível ver que há uma capacidade de resistência dos povos, há uma capacidade de mudar isso. O neoliberalismo tem políticas para o continente latino-americano, e muitas vezes reagimos depois que nos dão o golpe. Temos que ter estratégias de construção, de possibilidade de mudança. Acredito que existem outros interesses em jogo, que privilegiam o capital financeiro sobre a vida dos povos. Quando os recursos começam a se esgotar, surgem esses golpes para se apropriarem dos recursos naturais. Já existem no mundo, por exemplo, 32 países com falta de água. Onde vão buscar? Nos países que têm reservas, como os da América Latina e da África. Eles buscam o que querem e as consequências são países empobrecidos. Recentemente estive trabalhando com a Organização das Nações Unidas (ONU) na África do Sul e na Namíbia, e aí pudemos ver os ataquem sem piedade aos povos.
Vemos não só no Brasil, mas também no restante do mundo, um crescimento de partidos com visões mais conservadoras. O senhor acredita que a democracia, como existe hoje, está falhando e dando espaço para a volta de movimentos antidemocráticos?
O que significam as democracias hoje? As democracias delegativas não servem mais. Temos que mudar para uma democracia participativa, ver também os sistemas de produção. Uma coisa é o desenvolvimento, e outra é a exploração. Não respeitamos mais os valores da terra. Estamos devastando, perdendo as condições mundiais e isso afeta a todos. Então é necessário que os povos da América Latina se unam, um país só não pode sozinho, mas todos juntos podemos criar espaços de desenvolvimento, de integração. Temos que repensar na democracia que queremos, no país que queremos e para onde vamos. Um antigo provérbio já dizia: "se não sabes para onde vais, volta para saber de onde vens".