Na terra do presidencialismo, são os vices que roubam a cena em alguns dos momentos mais marcantes da história brasileira. A iminência da chegada de Michel Temer ao cargo mais alto do Executivo reproduz um jogo de poder vigente desde os primeiros anos de República no Brasil – muitas vezes cercado de polêmica.
O primeiro caso foi logo na instauração da República, quando o marechal Deodoro da Fonseca renunciou à Presidência em meio à Revolta da Armada, e o poder caiu no colo do vice, Floriano Peixoto, em 1891. Em vez de convocar novas eleições, como previa a Constituição vigente, Peixoto se manteve no poder, alegando uma brecha na lei, e conseguiu estabilizar a ordem política.
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Nos governos seguintes, outros substitutos foram alçados a presidentes, tornando-se figuras centrais: Manuel Vitorino Pereira viu a chance de implementar seus próprios planos quando Prudente de Morais teve de se afastar por motivos de saúde – o que inclusive antecipou o retorno deste –; Café Filho assumiu após o suicídio de Getúlio Vargas, em meio ao burburinho de que o vice se aproximava traiçoeiramente da oposição.
– O vice é que nem herdeiro do trono – compara a cientista política e historiadora Isabel Lustosa. – É sempre uma ameaça a quem governa.
Apesar da sombra dos vices, é casual sua rotina de tomada do poder no Brasil, avalia Isabel. Ou seja: esta frequência não decorreria de uma cultura de disputa interna ou legislação que favoreça o protagonismo dos suplentes, mas por razões aleatórias: falecimento do presidente, afastamento em razão de saúde ou renúncia em tempos de efervescência política.
– Há poucos registros no Brasil de algum movimento de vice para enfraquecer presidentes, e, com certeza, nenhum similar ao que ocorre agora, com a articulação ostensiva de Temer para montar um novo governo antes do desfecho do impeachment – afirma Isabel.
Na avaliação de José Otávio Nogueira Guimarães, professor de História da Universidade de Brasília (UnB), o protagonismo recorrente dos vices evidencia uma instabilidade na República brasileira. Sua avaliação é que antes de 1964, quando eram escolhidos diretamente pelos eleitores nas eleições (podiam ser escolhidos até adversários do presidente), os vices ganhavam legitimidade para assumir o poder, o que não ocorre agora.
– Antes os substitutos carregavam o voto popular, eram parte fundamental do governo. Depois de 1964, com a formação das chapas, os vices passaram a ter papel secundário – afirma Guimarães.
A atual estrutura política obriga os candidatos à Presidência a buscarem vices de partidos não necessariamente alinhados a seus planos, mas garantir a governabilidade, levando ao poder políticos pouco conhecidos pela população.
Não é à toa que três dos últimos cinco vice-presidentes do Brasil eram do PMDB, partido com forte presença no Congresso. O problema, avalia Guimarães, é que o papel dos suplentes é praticamente nulo no desenvolvimento de políticas públicas.
– Talvez o único vice destes últimos que tenha realmente ajudado na articulação do governo tenha sido José Alencar (vice de Lula), que fez um trabalho importante de aproximação com os empresários – avalia Guimarães. – Os outros eram meramente decorativos.
Os suplentes e o poder: alguns vices que chegaram à Presidência no Brasil
1891
Com a renúncia de Deodoro da Fonseca, o vice Floriano Peixoto assumiu a presidência em meio a um conturbado cenário político – era intenso o movimento para restaurar o Império. Com pulso firme, Peixoto venceu os focos de oposição e levou boa parte do mérito pela estabilização do regime republicano.
1896
Talvez o primeiro vice que tenha flertado em demasia com o poder tenha sido Manuel Vitorino Pereira, que assumiu interinamente quando Prudente de Morais se afastou em razão de uma cirurgia. Pereira tentou adotar uma política própria e centralizou atenções durante a Guerra de Canudos. Algumas medidas causaram alvoroço na época, como a transferência da sede do governo do Itamaraty para o Palácio do Catete.
1954
Os primeiros burburinhos de conspiração de um vice foram ouvidos em 1954. Parte dos historiadores apontam certa sedução de Café Filho pelo movimento de oposição ao presidente Getúlio Vargas. Mas, com o suicídio do titular, seu legado de conspirador nunca chegou a ser unanimidade, até porque seus 14 meses de governo foram duros, e pressões levaram à sua renúncia.
1961
João Goulart foi vice de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. Chegou ao poder com a renúncia de Jânio, em um dos episódios mais conturbados da história brasileira, com forte polarização política. O regime parlamentarista drenou poderes de Jango em seus primeiros anos de governo, e, quando o presidencialismo foi restaurado, acelerou-se o movimento que resultaria no golpe militar de 1964.
1985
Primeiro vice da Nova República, José Sarney governou por cinco anos em decorrência do falecimento de Tancredo Neves. Sua chegada ao poder foi cercada de polêmica: houve discussão se a vaga deveria ser ocupada pelo vice ou o presidente da Câmara dos Deputados. A opção por Sarney teria sido articulada pelo então ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, por ser um nome que agradava aos militares.
1992
Segundo peemedebista a passar de vice para presidente, Itamar Franco ascendeu após a renúncia de Fernando Collor de Melo para escapar do impeachment. Seu governo teve ares folclóricos, como a ressurreição do Fusca, o inconfundível topete e um episódio em que foi fotografado com uma modelo sem calcinha durante o Carnaval. Adotou uma postura discreta durante o processo contra Collor, evitando expor opiniões ou planos de governo.