É enganoso um vídeo que sugere que o presidente Jair Bolsonaro (PL) é a favor da pílula do aborto. O conteúdo usa trechos cortados de um discurso de Bolsonaro feito em 2006, em que ele cita a prática do aborto como controle de natalidade na China. O discurso do então deputado, na íntegra, defendia o projeto de lei apresentado naquele ano para facilitar o acesso dos brasileiros a laqueaduras e vasectomias em hospitais públicos.
Conteúdo investigado: vídeo montagem com cena do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em debate do segundo turno na TV Globo, na sexta-feira (28), falando que o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) defendeu pílula abortiva em discurso na Câmara dos Deputados em 1992. O conteúdo também inclui gravação cortada de discurso de 2006 do então deputado Bolsonaro. No discurso, para argumentar que era urgente adotar uma política de controle de natalidade no Brasil, Bolsonaro citou dados sobre o procedimento de aborto como prática para controle de natalidade utilizada na China.
Onde foi publicado: Twitter.
Conclusão do Comprova: é enganoso vídeo que reproduz parte de um discurso de Jair Bolsonaro (PL) em 2006, quando ele era deputado federal, e tenta associá-lo a “pílulas abortivas”. A montagem começou a circular após uma fala de Lula em debate do segundo turno na TV Globo, na última sexta-feira (28), sobre suposto apoio do então deputado à prática do aborto como forma de controle de natalidade em discurso na Câmara em 1992.
De fato, Bolsonaro mencionou o uso de pílulas abortivas pela China para controle de natalidade em discursos na Câmara tanto em 1992 como em 2006, mas, em nenhuma das ocasiões, ele afirmou explicitamente que as pílulas deveriam ser usadas no Brasil. Na verdade, o então-deputado defendeu a facilitação da realização de laqueaduras e vasectomias em hospitais brasileiros, trecho que foi cortado do vídeo viral. A gravação usada no vídeo também não é do mesmo discurso ao qual o petista se referiu no debate de 28 de outubro. Na ocasião, Lula leu o trecho de uma fala de Bolsonaro em 1992, enquanto o vídeo mostra discurso do então deputado em 2006.
No vídeo compartilhado pelos posts enganosos, que mostram um discurso de 13 de julho de 2006 na Câmara dos Deputados, Bolsonaro realmente usou o termo “pílula do aborto”. No entanto, ele mencionou a medicação para argumentar que, apesar do uso do medicamento e do procedimento cirúrgico de aborto em mulheres com gravidez avançada, a taxa de natalidade da China seguia altíssima.
Embora não tenha pregado contra o método chinês, a fala de Bolsonaro, na época, defendeu um projeto de lei que previa a descriminalização das laqueaduras e vasectomias no país para maiores de 21 anos. Ele argumentou que, naquela época, uma mulher precisava ter mais de 25 anos de idade e ao menos três filhos para poder fazer o procedimento em hospitais públicos brasileiros. No vídeo enganoso, o trecho em que ele defende as laqueaduras e vasectomias foi cortado.
Na época, a lei em vigor, Lei Nº 9.263/1996, dizia que a pessoa com capacidade civil plena que desejasse realizar a vasectomia ou laqueadura precisava ter no mínimo 25 anos e ao menos dois filhos vivos, diferentemente do pregado por Bolsonaro na Câmara em 2006. A regra é explicitada no artigo 10º, inciso primeiro da dita lei.
Para o Comprova, enganoso é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: o Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Apenas um post no Twitter com o vídeo checado acumulava mais de 1,6 milhão de visualizações até este domingo (30).
O que diz o responsável pela publicação: o perfil que postou a montagem da fala de Lula no debate e o trecho do discurso de Bolsonaro em 2006 não permite o envio de mensagens pelo Twitter. O Comprova não encontrou o mesmo usuário em outras redes sociais.
Como verificamos: o Comprova buscou os discursos de Jair Bolsonaro em 2006 – que aparece no vídeo – e de 1992 – mencionado por Lula – por meio da busca avançada pelas palavras-chave Bolsonaro, China e aborto, com seleção para localizar apenas conteúdos do site da Câmara. Os dois foram encontrados.
Em seguida, foi consultado o plano de governo de Bolsonaro para 2023-2026, para saber se havia alguma referência a aborto.
Também foram procurados os autores dos posts em que aparecem o vídeo viral e as assessorias de imprensa da campanha dos candidatos Lula e Bolsonaro.
O que Bolsonaro disse no discurso de 2006
O vídeo em que Bolsonaro fala sobre uso de pílulas de aborto na China é parte de um discurso dele na Câmara dos Deputados em 2006. Na época, em 13 de julho daquele ano, Bolsonaro era deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro. A íntegra do discurso está disponível no site da Câmara e é um pouco diferente do que mostra o vídeo viral. O trecho usado no vídeo é o seguinte:
“Quem quiser traduzir a palavra controle para planejamento fique à vontade. Eu falo em controle da natalidade. Nós vemos a China como tá com 1 bilhão e 400 milhões de habitantes, com um rígido controle de natalidade, com a pílula do aborto funcionando, com aborto até de mães com oito meses de gravidez sendo submetidas ao aborto, e assim mesmo a China cresce à taxa de 20 milhões de habitantes por ano. Nós temos de adotar urgentemente uma política de controle de natalidade em nosso país”.
O vídeo é cortado e não mostra, contudo, o seguinte trecho, em que o então deputado fala sobre as laqueaduras e as vasectomias: “na condição de parlamentar, não posso apenas falar, tenho de mostrar o que está sendo feito. Temos uma proposta de emenda à Constituição que tramita nesta Casa desde 2002, com o objetivo de descriminalizar a realização de laqueadura e vasectomia. Hoje em dia, para uma senhora fazer laqueadura, ela tem que ter mais de 25 anos e 3 filhos. Então, a grande maioria delas acaba não fazendo a laqueadura, até porque, quando chegam ao hospital público, geralmente são impedidas, enfrentam dificuldades, são aconselhadas a não fazerem isso e, consequentemente, são jogadas para uma clínica particular. Por fim, essas senhoras acabam tendo 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 filhos, e a conta cai para a sociedade, para os que trabalham, produzem e pagam impostos. E existe toda uma demagogia com relação ao dinheiro, aos projetos sociais. Sou totalmente contra isso”, diz o então deputado.
A lei em vigor na época, de Nº 9.263/1996, dizia que a pessoa com capacidade civil plena que desejasse realizar a vasectomia ou laqueadura precisava ter no mínimo 25 anos e ao menos dois filhos vivos, diferentemente do pregado por Bolsonaro na Câmara em 2006, quando disse “ao menos três filhos”. O artigo 10°, inciso primeiro da lei diz:
“Em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce”.
O que Bolsonaro disse no discurso de 1992
Aquela não foi a primeira vez em que Bolsonaro falou sobre facilitar laqueaduras e vasectomias e mencionou o método de pílulas de aborto usado na China. Foi uma fala dele em 1992, também na Câmara dos Deputados, que o candidato Lula usou para questioná-lo sobre o aborto durante o debate no dia 28 de outubro. Lula leu um trecho do discurso proferido em Bolsonaro naquele ano, mas acabou distorcendo a declaração ao acrescentar que o então deputado havia sugerido que “pílulas de aborto” fossem distribuídas à sociedade brasileira, o que não é verdade, como mostrou o UOL Confere.
Naquela época, Bolsonaro era deputado federal pelo PDC do Rio de Janeiro e fez um pronunciamento no dia 3 de abril de 1992 sobre controle de natalidade, vasectomia e laqueaduras. Sobre as pílulas do aborto, ele citou a proposta da China de distribuir o medicamento para parte da população e pediu que uma reportagem da Folha sobre o assunto constasse nos Anais da Câmara. A matéria falava que a China havia iniciado a produção em Pequim e Xangai das pílulas RU-486, desenvolvidas havia dois anos na França, e que calculava o início da distribuição para a população até o final de 1992. O medicamento também é conhecido como mifepristona e nunca foi aprovado no Brasil.
No discurso, Bolsonaro defendeu laqueaduras e vasectomias e se mostrou favorável à esterilização de mulheres, sobretudo de mulheres pobres, afirmando que, se esse procedimento tivesse sido feito, não haveria alguns milhões de crianças miseráveis. No foco do discurso, estavam os interesses econômicos e a segurança nacional. “É certo que o nosso País, até mesmo por obediência ao que se acha inscrito no Capítulo dos Direitos Sociais da Constituição, tem obrigação de assegurar assistência médica oficial a todos os brasileiros para que possam livremente decidir sobre o número de filhos que desejam ter. Por isso, somos favoráveis a que todos os hospitais públicos, conveniados ou por eles contratados, tenham condições de realizar vasectomia ou laqueadura de trompa, que são métodos eficientes e aprovados de contracepção, desde que precedidos de ampla campanha pelo rádio e pela televisão”, disse à época.
Durante o debate da Globo da última sexta-feira, Lula leu um trecho de uma fala de Bolsonaro no pronunciamento de 1992, em que ele dizia que não adiantava uma “multidão de subnutridos” que não podia servir ao País, referindo-se às Forças Armadas. Em seguida, afirmou que Bolsonaro tinha sugerido a distribuição de pílulas do aborto. A segunda parte da fala não é verdade, embora Bolsonaro não tenha condenado a prática chinesa. A primeira, contudo, foi realmente dita pelo parlamentar, mas, no debate, foi usada fora de contexto por seu adversário.
Bolsonaro declarou: “lembro aqui que sou, antes de parlamentar, membro de nossas gloriosas Forças Armadas. O serviço militar obrigatório recruta por ano cerca de 800 mil homens, dos quais só 200 mil são considerados aptos para servir à Pátria. A maioria é reprovada no exame médico; o que prova que de nada adianta à Nação ter uma multidão de brasileiros subnutridos, sem condições de servir ao seu país”.
Procurada pelo Comprova, a assessoria do candidato Lula disse que “o discurso é de Bolsonaro e consta nos Anais da Câmara”.
Bolsonaro sancionou lei que facilita o acesso à laqueadura e à vasectomia em 2022
Em 2022, foi sancionada pelo já presidente Jair Bolsonaro a Lei 14.443, de 2022, que reduziu a idade mínima para realização de laqueadura ou vasectomia de 25 para 21 anos e dispensou a exigência de consentimento do cônjuge. O texto aprovado neste ano alterou a lei de 1996 sobre prazos, técnicas e condições para esterilização no planejamento familiar.
Contudo, a nova lei não alterou os pré-requisitos para a aprovação do procedimento: ter pelo menos dois filhos vivos e prazo mínimo de 60 dias entre a solicitação e a cirurgia, bem como aconselhamento para desencorajar a esterilização precoce.
Em 2006, Bolsonaro, deputado à época, apresentou o Projeto de Lei N.º 7.438, que já trazia como proposta as mesmas mudanças aprovadas em 2022. A proposta do parlamentar, porém, foi rejeitada.
O programa de governo de Jair Bolsonaro, disponibilizado no sistema Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), não faz nenhuma menção ao aborto, vasectomia, laqueadura, controle de natalidade ou planejamento familiar.
Por que investigamos: o Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais sobre eleições presidenciais, políticas públicas do governo federal e pandemia. Em toda a campanha eleitoral, têm sido frequentes as publicações que fazem insinuações falsas ou enganosas a respeito da popularidade dos dois candidatos à Presidência que disputam o segundo turno, Lula e Bolsonaro. A circulação desses conteúdos pode prejudicar a escolha do eleitor, que deve ser feita com base em informações verdadeiras.
Outras checagens sobre o tema: a agência UOL Confere já checou conteúdo sobre o mesmo tema e mostrou que Bolsonaro mentiu no debate, na Globo, ao dizer que não citou pílula abortiva em 1992.
O Comprova já mostrou recentemente que um panfleto divulgado em redes sociais apresentava lista falsa de propostas de Lula para o governo, entre elas a liberação do aborto; que a torcida do Vasco não recebeu Lula e Paes com xingamentos, pois nenhum dos dois estava no estádio; e que postagens confundem documento de Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT com plano de governo de Lula.
Neste final de semana, a equipe do Comprova se uniu a outras 6 iniciativas de checagem de fatos no Brasil para verificar conjuntamente a desinformação sobre as eleições. A parceria reúne AFP, Aos Fatos, Boatos.org, Comprova, E-Farsas, Fato ou Fake e Lupa.