Enquanto quase 7% dos porto-alegrenses votaram em branco ou anularam o voto para prefeito no segundo turno, um terço dos eleitores optou por simplesmente não ir às urnas no último domingo (29).
Embora levemente mais baixo do que no primeiro turno quando 33,08% deixaram de votar, o percentual de abstenções foi de 32,76%. Isso equivale a 354.692 pessoas que não compareceram às urnas, contra 277.521 em 2016, ou seja, 77.171 votos a menos. A alienação eleitoral – soma de brancos (20.938), nulos (28.801) e abstenções (354.692) aproximou-se dos 40% (404.431), número maior do que o atingido por Sebastião Melo (MDB) - 370.550 votos.
Nenhum dos candidatos mereceria meu voto. Entre o ruim e o pior, o nada foi minha escolha.
CÁSSIA SILVA
Eleitora de Porto Alegre
Pelas redes sociais, GZH provocou os leitores que se abstiveram de votar a falar sobre as razões que os levaram a não comparecer às urnas no segundo turno. As respostas estão ao longo deste texto.
Se é consenso que parte desse abandono deve-se à pandemia de coronavírus, que pode ter desestimulado, principalmente, integrantes de grupos de risco e pessoas com sintomas da doença, especialistas alertam que a influência da covid-19 pode ser menor do que parece.
Para cientistas e analistas políticos ouvidos pela reportagem, o desencanto com a democracia, a falta de entendimento sobre o processo político, a ausência de representatividade e a facilidade para justificar o não comparecimento estão entre os principais fatores que, sozinhos ou conjugados, apartaram um naco do eleitorado das urnas. E merecem atenção da sociedade, do poder público e dos candidatos que participaram do pleito.
O que é o jornalismo de engajamento, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que coloca o público como protagonista da notícia, criando uma troca positiva e impactante na comunidade. Queremos abrir ainda mais espaço para que você, leitor, possa participar da construção do nosso conteúdo desde a concepção até o feedback após a publicação.
Como engajamos o público?
Convidamos nossos leitores a participarem da construção do conteúdo pelas redes sociais, monitoramos o que é discutido nos comentários das matérias e publicamos formulários que dão espaço a dúvidas e sugestões.
— O argumento da pandemia (como principal fator) é superficial e incompatível com a realidade. A alienação ficou em primeiro lugar. Isso não pode ser tratado como uma coisa pueril. Em Porto Alegre, havia distinção e competitividade entre os candidatos, e não foi suficiente para fazer as pessoas irem votar. Esse sentimento de não querer participar é o que tem que ser compreendido — diz Marcia Dias, coordenadora do bacharelado em ciência política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Basta andar pelas ruas de Porto Alegre para observar que o medo de adoecer não é mais impedimento para uma parcela significativa da população sair de casa, mesmo sem que haja necessidade. Depois de uma série de flexibilizações, milhares de pessoas voltaram a lotar comércio, bares, restaurantes e outros espaços, muitas vezes sem os devidos cuidados ou mesmo ignorando o distanciamento social recomendado para conter a propagação do coronavírus.
Não me senti confortável de ir votar presencialmente. Para quem seguiu à risca o distanciamento social é um pouco assustador. Votaria se fosse pelo correio, como nos EUA, ou de forma não presencial. Acredito que seria mais respeitoso
MARCIA STEFENON
Eleitora
Para a pesquisadora da Unirio, o afastamento da urna vem na esteira de uma sequência de acontecimentos que reforçaram a decepção de parte dos brasileiros com a política e seus representantes, como escândalos de corrupção, uma eleição presidencial marcada pela polarização e maus exemplos na gestão da crise sanitária. Ela observa que o ressentimento com a degradação da democracia faz com que muitos eleitores, ao ponderarem, prefiram se afastar do processo político.
Primeiro, não me identifiquei com os candidatos; segundo, decidi passar a quarentena em Santa Catarina.
ISABEL MENEZES
Eleitora
Campanha virtual diminuiu engajamento
Outro ponto a ser levado em conta é a dificuldade dos concorrentes à prefeitura de engajar os eleitores, acentuada pelo modelo de campanha predominantemente virtual. Embora com propostas distintas, Sebastião Melo (MDB) e Manuela D’Ávila (PCdoB) tiveram pouco tempo para demarcar suas diferenças para parte do eleitorado, que não se sentiu motivado o suficiente para escolher entre uma das candidaturas.
A falta de identificação com os dois postulantes ao Paço Municipal foi determinante para o advogado Edson Gonçalves, 43 anos, abster-se pela primeira vez de votar em uma eleição. Depois que seu candidato no primeiro turno ficou para trás, decidiu não votar no dia 29.
— Os candidatos não fechavam em ideologia nem propostas com o que eu gostaria. No momento em que não me senti representado, preferi me abster do que ir até lá anular — argumenta Gonçalves.
Meu local de votação é bem longe e, quando votei no primeiro turno, peguei um ônibus superlotado. Sempre utilizei o transporte público, porém, em razão da pandemia, tive muito medo de pegar o vírus naquele dia. Queria votar, mas optei pela minha saúde.
ADRIANA MICHELON
Eleitora
Para a professora do programa de pós-graduação em ciência política da UFRGS Silvana Krause, o não comparecimento de parte do eleitorado denota, ainda, certa ressaca com o clima bélico que tomou conta da política brasileira nos últimos anos.
— Em 2018, teve uma onda antipolítica, uma experiência de desencantamento. Se aquela foi a eleição do ódio, 2020 foi a eleição do cansaço e do desânimo. Eles predominaram, mais do que o sentimento de raiva — observa.
Diante de um cenário menos estimulante, a pandemia tornou-se um argumento a mais para quem não se viu representado pelas propostas em disputa para ficar em casa no domingo.
Tive compromissos de família, acabei passando pelo local de votação, mas com pouco tempo. Quando vi, as eleições já tinham encerrado.
GIOVANNI LIMA
Eleitor
A engenheira civil Camila Machado, 36 anos, conta que não comparecer às urnas em 2020 foi uma decisão da família. Além dela e do marido, seus sogros, sua irmã e seu cunhado se abstiveram nos dois turnos. O principal motivo, segundo ela, foram as dificuldades impostas pela pandemia — os sogros e a irmã fazem parte de grupos de risco. Mas admite que, ainda que em circunstâncias normais, teria tido dificuldades de aderir a uma candidatura.
— Já fui mesária várias vezes, e é uma exposição danada. Nunca tinha feito isso (de não ir votar por convicção), mas não me importei. Nem sei em quem votaria. Nenhum candidato me representava o suficiente para correr o risco.
Na opinião de especialistas, o crescente apartamento dos eleitores das urnas deve ser encarado como um sinal de alerta para a sociedade em geral e para os políticos em particular. Doutora em ciência política, Érica Anita Baptista, observa que o ato de votar é apenas parte de um processo mais amplo, para o qual a população brasileira ainda é mal preparada:
A pandemia não acabou, está crescendo novamente, estou desde março sem sair para quase nada, minha mãe tem 76 anos e diversos problemas de saúde. Se eu contrair o vírus, não tenho como me isolar
DANIELA DE PADUA
Eleitora
— Falta aos brasileiros, de um modo geral, uma formação política desde cedo e informação de qualidade. Enquanto não tiver essa formação de base nas escolas, enquanto as pessoas não entenderem que política não é só eleições, vão crescer achando que não gostam de política e que todos os políticos são corruptos — diz.
A abstenção em 2020 também foi favorecida pela Justiça Eleitoral. Devido à pandemia, a justificativa de ausência, antes feita de forma presencial, ficou ao alcance de um toque na tela do celular, pelo app e-título. Eleitores que não compareceram têm até 60 dias para informar o motivo do não comparecimento.
Não acredito que (os candidatos) trariam alguma novidade considerável para a cidade, pelo histórico político. Onde eu voto é bem longe da minha casa e gastaria mais que o valor da multa em gasolina para votar branco/nulo.
PRISCILA LEITE
Eleitora
Voto facultativo pode fragilizar processo
Registrado em diversas capitais nos dois turnos, o aumento no índice de abstenções pelo eleitorado reacende um debate que, há anos, ronda o processo eleitoral brasileiro. Em redes sociais, na boca de alguns políticos e mesmo em uma enquete realizada por GZH sobre as razões para não participar da eleição, surgem questionamentos sobre a obrigatoriedade do voto no Brasil.
O assunto já foi discutido por parlamentares em, pelo menos, duas oportunidades nos últimos anos. Em 2015, o plenário da Câmara dos Deputados rejeitou, por 311 votos a 134, o fim do voto obrigatório. No ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado deu parecer contrário à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que institui o voto facultativo.
Minha esposa faz parte do grupo de risco, então optei por não me expor a aglomerações na votação. Não votamos no primeiro e no segundo turno por esse motivo.
ALESSANDRO MARTINS CUNHA DA SILVA
Eleitor
Para estudiosos do assunto, avançar em direção ao voto facultativo representa um retrocesso no processo democrático e pode enfraquecer a já combalida democracia brasileira. No entendimento dos especialistas ouvidos pela reportagem, quanto menos pessoas participam do processo eleitoral, menos legitimidade têm os representantes escolhidos para governar.
— É um dilema para uma democracia jovem como a brasileira fazer com que as pessoas percebam como a política melhora a vida delas, especialmente, em um momento de crise, porque a ideia do diálogo e da participação não é tão consolidada. O que precisamos é melhorar a qualidade do debate, para que as pessoas consigam compreender que votar é uma parte do processo político, que é lento. Não há solução rápida na democracia — diz o analista político Creomar de Souza, fundador da consultoria política Dharma.
Votei no primeiro turno e vi que as medidas de segurança eram falhas ou insuficientes. Pessoas circulando sem máscaras, o mesário dentro da sala sem máscara (colocou apenas quando eu entrei) dentre outras situações.
LARISSA*
Eleitora *Preferiu não ser identificada.
Souza destaca, ainda, que a obrigatoriedade de comparecer à urna tem um caráter educacional, cujo objetivo é estimular as pessoas a refletirem. Tanto que é possível votar em branco (o voto mais fácil, ao alcance de uma tecla) ou mesmo anular o voto. Além disso, a justificativa de ausência é simples, e a multa aplicada em caso de esquecimento é simbólica (R$ 3,50 por turno não justificado).