Já se passaram mais de quatro meses desde o início do período eleitoral de 2022, que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente do Brasil, além de novos governadores, senadores e deputados estaduais e federais. Em setembro, o Brasil iniciou a caminhada da democracia com campanhas focadas em destrinchar erros, principalmente, de gestões anteriores, como a dos petistas Lula e Dilma Rousseff, do ex-presidente Michel Temer (MDB) e do então presidente Jair Bolsonaro (PL). O resultado foi um segundo turno entre, justamente, o candidato do Partido dos Trabalhadores e do Partido Liberal. A disputa ficou marcada na história como o segundo turno presidencial mais parelho desde a redemocratização, em 1985: Lula, eleito, teve 50,90% dos votos válidos, enquanto Bolsonaro recebeu apoio de 49,10% dos brasileiros que optaram por um candidato.
A confirmação da terceira vitória de Lula gerou uma série de protestos de bolsonaristas insatisfeitos com o resultado das urnas. Das rodovias bloqueadas por caminhões aos acampamentos em frente aos quarteis, os manifestantes realizaram dois episódios violentos em Brasília. Um deles ocorreu no dia da diplomação do presidente eleito, no dia 12 de dezembro, quando os extremistas incendiaram carros e fogos pelas ruas de Brasília e tentaram invadir a sede da Polícia Federal na capital. O segundo, e mais grave, foram as invasões e depredações dos prédios dos Três Poderes — Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal —, em que o patrimônio público e histórico foi danificado, com vidraças quebradas, cadeiras e mesas destruídas e obras de arte de alto valor danificadas.
Para o cientista político e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, Maurício Moya, não é possível prever os desdobramentos políticos que irão ocorrer a partir dos atos violentos que ocorreram em Brasília, já que as investigações ainda estão no início e haverá repercussão pelas próximas semanas. Entretanto, ele afirma que uma das poucas certezas que se pode ter é o maior isolamento da extrema-direta.
— Seus representantes mais visíveis (Bolsonaro e os militares de alta patente) estão acuados e na defensiva. Esperamos que ocorram punições para quem financiou e organizou os atos violentos, fundamentadas em evidências consistentes, e que elas sirvam para arrefecer o comportamento radical da extrema-direita, reduzindo o alcance de sua influência — destaca.
Já o cientista político Marcos Paulo dos Reis Quadros vê esse recuo de setores menos combativos da direita como temporário. Para ele, sem novos excessos às instituições, podemos esperar uma normalidade maior.
— No curto prazo, setores menos combativos da direita podem ficar acuados, mas retomarão sua atividade porque não há espaços vazios na política. Se não se expandirem os excessos do STF e se houver contenção das alas mais duras do bolsonarismo, o melhor que podemos esperar é uma normalidade restrita, com governo e oposição cumprindo seus respectivos papeis, ainda que com grande instabilidade — explica Marcos.
Marcos também explica que os atos antidemocráticos que ocorreram em Brasília podem se tornar um combustível a mais em uma disputa política, cujo cenário de campanha tende a permanecer por mais tempo.
— A direita em geral entenderá os processos como mera perseguição política, ao passo que a esquerda procurará se valer deles para deslegitimar a oposição, e não para buscar a verdade. Os dois principais líderes, Bolsonaro e Lula, não demonstram nenhum sinal de contemporização ou de pacificação: ambos se dirigem mais às suas militâncias do que aos segmentos médios da população.
Futuro da extrema-direita sem Bolsonaro
O cientista Marcos explica que a volta expressiva da direita ao cenário político ocorre pois representa os valores de uma grande fatia dos eleitores, e, quando um candidato defendeu estas pautas, foi bem sucedido. Mesmo assim, ele considera que a ala política é maior do que a figura do ex-presidente Bolsonaro, da mesma forma que a esquerda vai além de Lula.
— Apenas por sua própria incompetência é que a direita poderia perder influência. Se não se deixar levar pelas táticas de seus oponentes, a direita permanecerá competitiva. A esquerda superou a postura defensiva que precisou assumir depois da Lava-Jato e da prisão de seus líderes, retornando ao poder também porque suas bases acharam na oposição ao bolsonarismo um combustível para a reação. A direita deve fazer o mesmo caso prosperem as medidas judiciais contra Bolsonaro — explica.
Já para o professor Maurício deve haver um rearranjo das forças políticas de extrema-direita em todos os níveis políticos. Para ele, os políticos mais pragmáticos, que surfaram na onda do bolsonarismo, devem buscar o eleitor mais moderado.
— Ainda há muito sentimento anti-esquerda. Já aqueles políticos que defenderam mais fortemente a ideologia extremista terão mais dificuldades em se reposicionar no espectro - explica.
Democracia brasileira é "jovem e imatura"
Em relação à democracia brasileira, Moya afirma que foram quatro anos de um governo federal que "esticou as cordas e forçou todas as regras democráticas que pareciam consensuais por quase três décadas". Mesmo assim, enxerga que estamos retornando a um funcionamento "normal e civilizado".
— O sistema político brasileiro passou por estresses muito grandes e agora está aos poucos voltando ao seu funcionamento normal e civilizado. Essa experiência certamente levará ao aprimoramento do sistema e a criação de novas regras, o que é normal, uma vez que a democracia é uma construção permanente, que nunca atingirá um “estágio definitivo”.
Marcos Quadros explica que, apesar de já estarmos há 35 anos sob as regras da mesma Constituição, nossa democracia é "jovem e, portanto, imatura". Isso faz com que as instituições que comandam o país sejam hesitantes.
— As afrontas surgem de todo lado: das sanhas golpistas às arbitrariedades levadas a cabo pelo STF. Se não se pode tolerar a invasão do Palácio do Planalto, também é absurdo negociar o direito à liberdade de expressão e naturalizar o excesso de poder nas mãos de um membro da Suprema Corte.
Além disso, Marcos afirma que, no geral, as pessoas se sentem injustiçadas quando pagam altas taxas e impostos, e não recebem serviços públicos adequados. Por isso, não haveria grandes incentivos para a população apoiar ativamente o sistema. Além disso, o cientista acredita que não parece existir uma visão de longo prazo para a nação ou um projeto de Estado.
— Assim, flutuamos conforme as preferências do governo de plantão, com rupturas nocivas e ausência de visão estratégica, cujos resultados demoram para ser colhidos. Temos baixa consciência cívica, tanto na sociedade quanto na classe política. A solução é complexa e demanda tempo, mas certamente passa por amplos investimentos em uma educação remodelada e na recuperação da alta cultura, do ponto de vista social, e por reformas densas nas instituições e na atual regulação das atividades econômicas, do ponto de vista político.
Um fim para a polarização
Neste assunto, os dois cientistas concordam: a polarização deve continuar. O cientista Marcos diz que direita e esquerda encarnam visões de mundo que existem na sociedade, e esta é a regra da política, não a exceção.
O problema é a radicalização, e não a polarização. Os próximos anos deveriam ser de reeducação política no Brasil, com valorização da tolerância e do diálogo entre quem pensa diferente
MAURÍCIO MOYA
Cientista político e professor
— Foi assim ao longo de toda a história brasileira: conservadores e liberais no Império, getulistas e antigetulistas, PTB e UDN, Arena e MDB, PT e PSDB. Bolsonaro e Lula representam apenas a mais recente versão desse fenômeno, que se reproduz também em quase todas as democracias atuais. Logo, não há nenhum indício de que esse padrão possa ser rompido.
Na mesma direção, Maurício explica que, sem divisões e polarização, o que ocorre é o surgimento de regimes totalitários e autoritários, em que as pessoas que pensam diferente são perseguidas e punidas. Segundo o professor, quando não há polarização, o que temos são regimes hegemônicos, em que as demandas das minorias são abafadas ou esmagadas pela maioria.
— O problema é a radicalização, e não a polarização. Nesse sentido, os próximos anos deveriam ser de reeducação política no Brasil, com valorização da tolerância e do diálogo entre quem pensa diferente, em substituição ao discurso de ódio e de violência que vimos no passado recente. Um ponto importante e delicado que deverá ser enfrentado é o papel dos militares, que de uma vez por todas devem deixar de ter aspirações de poder e de comando político, e limitarem-se às suas atribuições constitucionais, como o controle das fronteiras e de armas de fogo.