A prefeitura de Caxias do Sul pagou R$ 4,8 milhões em vencimentos de apenas 135 servidores municipais nas folhas dos meses de setembro e outubro deste ano. Eles receberam acima do teto constitucional no município, que é baseado na remuneração do prefeito Daniel Guerra (PRB), atualmente no valor de R$ 21.529,01. Também conforme a Constituição Federal, nenhum servidor pode ter remuneração maior do que ganham os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), R$ 33.763. A relação dos salários nos dois meses mostra que 52 servidores receberam acima do teto do STF.
Tal situação ocorre, em geral, porque esses servidores acumulam benefícios e recebem indenizações por férias e licenças-prêmio ao deixarem o serviço público. A folha de pagamento dos cerca de 6,7 mil servidores chegou a R$ 39,6 milhões e R$ 39,3 milhões, respectivamente, nos meses de setembro e outubro. Atualmente, a folha do funcionalismo representa 44% da receita do município. O máximo permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal é de 54%.
Na lista, estão funcionários públicos que exercem cargos de assistente social, contador, médico, professor e motorista, entre outros. Ainda aparecem operador de máquinas, almoxarife, bibliotecário, enfermeiro, procurador, motorista e jardineiro. No topo de setembro, está o supervencimento pago a um assistente social, que recebeu R$ 178,6 mil (veja quadro nesta página). O maior valor bruto pago corresponde a mais de oito vezes o salário de Guerra. Com salário base de R$ 6.013,89, o assistente social se aposentou depois de 39 anos e 6 meses de trabalho. Para chegar ao montante, o funcionário público acumulou três meses e meio de férias indenizadas, 15 dias de férias proporcionais e três meses de licenças-prêmio. Na lista de outubro, o maior supervencimento também foi pago a um assistente social: R$ 148,8 mil. Ele tem 31 anos e 6 meses de serviço público.
Acumulado na vida funcional
Preocupada com a reação negativa da população com a publicação da relação dos supervencimentos, a secretária de Recursos Humanos e Logística, Vangelisa Lorandi, explica que as remunerações representam o acumulado da vida funcional dos servidores com 15 a 30 anos de tempo de serviço e demonstra a falta de gestão dos governos anteriores sob o controle de custos com a folha de pagamento.
– É inadmissível (um servidor) ter acumulado tantos períodos de férias e licenças-prêmio– diz Vangelisa sobre o assistente social que recebeu R$ 178,6 mil.
A secretária reconhece o valor pago aos servidores, mas considera que apenas cinco médicos recebem acima do salário do prefeito. Ela não informou os valores. Vangelisa também destaca que os altos salários são resultados dos avanços previstos no Estatuto do Servidor. Os cinco principais benefícios incorporados pelos servidores são o incremento de 5% a cada três anos de trabalho e de 10% a cada seis anos, gratificação adicional de 19% ao completar 15 anos de exercício e de 35% quando atinge 25 anos de trabalho, além da função gratificada (FG), paga ao funcionário público que exerce cargo de chefia, que pode ser incorporada ao salário. Os percentuais de aumento previstos por tempo de serviço no Estatuto de Servidor não são cumulativos.
Redutores de salário têm um efeito limitado
Para amenizar o pagamento dos supervencimentos, a administração municipal aplicou, de janeiro até março, um parecer da Procuradoria-Geral do Município (PGM) que mantinha congelado o salário do servidor que atingia o teto do prefeito. A partir de abril, por nova orientação da PGM, a administração iniciou a aplicação do redutor de vencimentos para 18 servidores, obtendo uma economia de R$ 36.083,91. Desde maio, a prefeitura está impedida, por decisão do STF, de manter a aplicação de teto para servidores com duas matrículas, devendo ser considerado para aplicação da medida cada vínculo do funcionário público. Vangelisa não soube mensurar a economia com a aplicação do teto.
– Aplicamos o redutor desde janeiro para os servidores que ganhavam mais do que o prefeito. Somávamos as duas matrículas. Agora só podemos aplicar (o teto) na matrícula individual.
Vangelisa diz ainda que o redutor do teto constitucional somente pode ser aplicado no salário-base do servidor. As gratificações e avanços não são atingidas pela lei.
Além da tentativa de instituir o teto, o Governo Guerra está revisando o Estatuto do Servidor em conjunto com o Sindicato dos Servidores Municipais (Sindiserv) para corrigir as distorções salariais, controlando a revisão de férias vencidas e o número de licenças-prêmio por servidor. Vangelisa diz que as medidas servem para diminuir o passivo deixado durante anos.
– Queremos discutir as atualizações necessárias para a saúde financeira dos cofres do município. Essas discussões também perpassam pelos estudos de viabilidade de um plano de carreira – destaca Vangelisa.
“É legal, mas não é justo”
Após receber prints de imagens com os altos vencimentos dos servidores municipais em um grupo de amigos no WhatsApp, o jornalista Gustavo Guertler resolveu conferir se a informação era verdadeira ou não. Depois de procurar no site da prefeitura e confirmar a veracidade dos vencimentos, Guertler escreveu um texto no Facebook em que questiona o vencimento de um auxiliar de serviços rurais, de R$ 35,5 mil por mês, de um almoxarife que ganhou R$ 47 mil e de um bibliotecário com remuneração de R$ 48 mil (vencimentos recebidos no mês de setembro).
– Tenho amigos que trabalham no serviço público que merecem todo meu respeito por sua trajetória, mas tenho o direito de achar que essa situação é imoral e injusta. Isso também é uma forma de corrupção – desabafou Guertler, na rede social.
O jornalista critica a dificuldade de localizar as informações das renumerações no site da prefeitura e diz que o Executivo deve disponibilizá-las, para atender a Lei de Acesso à Informação.
– Na verdade, não é uma divulgação. A prefeitura deveria colocar essas informações muito mais visíveis do que estão – critica.
Guertler ressalta que é um dever do cidadão tomar conhecimento dos altos salários, pois a população contribui com os impostos.
– Independente dos argumentos de que é legal ou não, é uma coisa absurda. É legal, mas não é justo, e isso não impede de protestar e querer corrigir. Isso é uma aberração – protesta.
“Não queremos nenhum direito a menos”
Diante da polêmica, a presidente do Sindicato dos Servidores Municipais (Sindiserv), Silvana Piroli, afirma que os valores mais altos não são salários mensais, mas sim verbas indenizatórias de aposentadoria. Nem por isso deixou de ficar espantada ao saber que um servidor recebeu R$ 178 mil, mas ressaltou que foram pagas férias e licenças-prêmio acumuladas. Ela conta que a prefeitura ficou um período sem conceder licença-prêmio aos servidores, e que também há um limite de pagamento da vantagem por mês.
– O servidor pede licença-prêmio, quem não concede é o administrador. Se a prefeitura pagasse mais regularmente, não acumularia.
Silvana também enfatiza que todos os benefícios ou contrapartida de salário têm amparo legal e que o serviço público municipal passou por uma série de mudanças nos últimos anos, como a extinção das incorporações de efeito cascata. A sindicalista rejeita qualquer possibilidade de mudança nas vantagens por tempo de serviço previstas no Estatuto dos Servidores.
– Já deixamos claro, não queremos nenhum direito a menos. Isso não vamos discutir. Não é isso (vantagens) que aumenta os salários.
Para Silvana, as vantagens por tempo de serviço são os únicos incentivos para que as pessoas permaneçam trabalhando no serviço público. Ela diz que o Sindiserv pretende discutir com a prefeitura indicadores por qualificação e experiência profissional e outros critérios que devem ser construídos para o plano de carreira dos servidores.