Com mais de 1,3 mil processos de crimes contra a vida para apenas um juiz, a Vara do Júri de Caxias do Sul tem o maior volume do Estado. O acúmulo é uma decorrência da baixa produtividade recente, quando a 1ª Vara Criminal completou dois anos sem um juiz titular. A Corregedoria do Tribunal de Justiça admite a sobrecarga e, consequentemente, a lentidão dos processos. Mesmo com mais dois juízes direcionados para acelerar os trâmites, a expectativa é que serão necessários dois anos para colocar a pauta em dia.
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A situação é enfrentada diretamente pela juíza-corregedora Carla Patrícia Boschetti Marcon, que é responsável por 23 comarcas da Serra e proximidades. Natural de Caxias do Sul, a magistrada atuou na 7ª Vara Cível da cidade até 2009, quando se mudou para Porto Alegre.
A juíza assumiu a Corregedoria em setembro e busca alternativas não só para Caxias do Sul, mas para outras comarcas da Serra que tiveram prejuízos com as paralisações na pandemia. Parte da sobrecarga é explicada pela falta de juízes no Rio Grande do Sul — há 196 cargos desocupados e apenas 46 vagas previstas no concurso em andamento.
— É uma partida de xadrez para atender o maior número de pessoas envolvidos nos processos de cada cidade. São várias comarcas que estão com pisca-alerta ligado — resume.
Confira a entrevista completa:
Pioneiro: Como a Corregedoria avalia a situação da 1ª Vara Criminal em Caxias do Sul?
Carla Patrícia Boschetti Marcon: Ficamos muito preocupados com a situação de Caxias, assim que assumimos (a nova gestão, em setembro). Em virtude disso, criamos este regime de exceção para ter mais dois juízes ajudando na Vara. Só que veio a pandemia e atrapalhou. Agora, readaptamos o plano de trabalho. Os dois júris trabalharão em processos de réus presos para que os réus não sejam liberados em decorrência do tempo. A intenção é que, pelo menos até o final do ano, atuem estes três juízes (o substituto, Silvio Viezzer, e os dois escolhidos para o regime de exceção). E, no início do ano que vem, já teremos um novo juiz titular. Mas, é inegável que ficou um acúmulo de trabalho.
Como está o processo de escolha do novo juiz titular?
Na segunda-feira, dia 26, serão julgadas as promoções (do último edital), e uma das varas prevista é a 1ª Criminal de Caxias. O órgão especial, composto pelos desembargadores mais antigos, analisa a qualificação dos juízes que aceitaram a promoção e fazem uma votação. Depois da escolha, é aguardado se há algum recurso e, na sequência, acontece a tramitação. Na melhor das hipóteses, o novo juiz estaria em Caxias no final de novembro. Se o escolhido for um juiz eleitoral, é preciso esperar terminar este tempo (das eleições) que vai até dezembro. Enquanto isso, o doutor Viezzer continua com este excelente trabalho. Todos os júris de réus presos já estão marcados. Os outros dois juízes (do regime de exceção) fazem as audiências.
Qual o tempo médio de um processo de homicídio?
É difícil estabelecer. O tempo máximo de prisão preventiva seria de 90 dias, mas claro, durante o processo pode prorrogar. A nossa preocupação em destinar estes dois juízes é para que esse excesso de prazos não acabe por soltar estas pessoas. Mas, isso pode variar muito. Se há recurso, já alterada, se for por um pedido da defesa, principalmente. Em um processo, são muitas fases e possibilidades de recursos infinitas que, ao meu ver é um absurdo. (Sobre os 90 dias de preventiva,) é um posicionamento jurisprudencial. Não está na lei, mas é o que a jurisprudência estabelece. Estamos controlando os réus presos para que este tempo não passe. Mas, com expliquei, se tiver recursos o prazo se altera. É uma questão que sempre é debatida e, a cada situação que envolve prisão no STF (Supremo Tribunal Federal), se discute a respeito do excesso de prazo e causas de interrupção deste prazo.
Quanto tempo será necessário para colocar a pauta em dia?
Acredito que de um ano a dois anos, se continuar este regime de exceção (com dois juízes de apoio). Antes, acho difícil. Temos que ser objetivos quantos aos dados, e há um passivo muito grande. Geralmente, um regime de exceção é renovado em seis meses. É quando se faz uma avaliação do desempenho e verificamos se está sendo atingido o objetivos. Os juízes que estão designados estão trabalhando? A necessidade ainda persiste? É uma avaliação com todos os dados feitos a cada seis meses.
Que outras ações são possíveis para solucionar esta sobrecarga de processos?
Também estamos estudando a criação de outro juizado para a 1º Vara Crime (o que já acontece nas Varas do Júri em Porto Alegre, por exemplo). Juntamos os dados de todas as Varas de Júri das comarcas finais do Estado e estamos verificando o número de processos que tem em cada, para avaliar se é preciso este novo juizado. É um estudo mais aprimorado e demorado, não acontece em curto prazo. Com um juiz único, a Vara de Caxias do Sul é a maior do estado, com 1,3 mil processos. Em Porto Alegre, existem mais processos, mas fica dividido em mais juízes, assim a média de processos por juiz fica bem menor. É algo que está em análise. São vários passos até uma efetivação, é muito cedo para falar em prazos.
O cenário em Caxias do Sul faz parte da falta de juízes no Rio Grande do Sul?
Sim. Temos uma deficiência grande de juiz, até por isso os editais de promoção não têm a mesma velocidade que gostaríamos. Não podemos deixar uma comarca pequena sem juiz no meio do Estado. Temos locais em que a distância (de uma comarca para outra) é mais de 100 quilômetros, então não podemos deixar a comarca vazia. Estamos com um edital (com 46 vagas) para novos juízes em andamento, mas a última notícia é que a prova está suspensa em razão da pandemia. A empresa não quer fazer neste momento, em razão dos custos extras. Estamos aguardando este concurso para melhorar um pouquinho, mas sempre sobra vagas. O número de vagas é sempre superior ao de aprovados. Não é um concurso fácil, demanda muita disciplina e disponibilidade das pessoas de pararem tudo para estudar. Ao mesmo tempo, há em todo país outros concursos que são melhores remunerados do que no Rio Grande do Sul. Os que acabam sendo aprovados aqui, optam por assumir em outros Estados (em que também foram aprovados).
Há outras comarcas da Serra que preocupam a Corregedoria?
Temos várias comarcas pequenas que estão chamando a atenção, pelo número muito grande de processos. Posso falar pela minha região de atuação. Portão está com 16 mil processos. Carlos Barbosa tem 14 mil processos para um único juiz. Garibaldi está em um cenário semelhante. São várias comarcas pequenas que passaram a ter um volume absurdo de trabalho. Estamos analisando. Temos deficiência de servidores, de valores e de custos para criação de novas varas. É uma partida de xadrez para atender o maior número de pessoas envolvidos nos processos de cada cidade. São várias comarcas que estão com pisca-alerta ligado.
Como foi este período paralisações diante da pandemia de covid-19?
O prejuízo foi incomensurável. Trabalhamos muito. Em Caxias, por exemplo, foram dadas mais de 20 mil sentenças por todos juízes neste período. Mas, ficamos com um resíduo muito grande de audiências. Imagina, todas as audiências paradas desde março. Agora, retomamos com a maioria virtual. Iremos sentir os reflexos por um bom tempo, é inevitável. Mesmo que, com a pandemia, tenhamos inicializado a digitalização dos processos no Rio Grande do Sul inteiro. Era algo impensável, mas que foi colocado em prática nestes quatro meses. Temos toda a uma retomada de processos e audiências a serem realizados, em todas as áreas. É um número muito grande de processos que temos que correr atrás. Diariamente, pensamos como a Corregedoria pode ajudar cada juiz com seu resíduo de processos e audiências que ficaram parados. Estamos há três meses tentando descobrir como auxiliar os juízes a enfrentarem esta carga. Há todo um trabalho que precisamos fazer e que continuará no ano que vem, principalmente em algumas situação mais complicadas. Estamos nos preparando para isso.
Por que se tornou comum reclamar da lentidão do judiciário e da sensação de impunidade?
Não tem um fator determinante. É uma situação mais complexa. Temos uma legislação que favorece a pessoa que quer postergar o processo. Quem tem condições de contratar um advogado melhor consegue impulsionar ou retardar um processo. Também há a deficiência de servidores. Está em análise o plano de carreira, que talvez melhore a nossa situação, mas depende de atuação da Assembleia Legislativa também. Temos um número reduzido de juízes, é óbvio. Temos acúmulo de serviço em algumas varas especificas, como a de Caxias, que por questões que fogem do nosso controle tiveram esta sobrecarga. Não é uma questão simplista. Todos os entes públicos têm responsabilidade sobre isso. O Judiciário não está atrelado aos poderes Executivo ou Legislativo, mas a movimentação financeira do dinheiro destinado ao Tribunal de Justiça vem por liberação do Executivo. Isso cria responsabilidade para todos nós.
Qual é o caminho para melhorar?
Essa é a pergunta de R$ 1 milhão. Vejo que precisamos ter uma mudança de postura e da visão que toda sociedade tem sobre suas responsabilidades. Olhar para dentro da gente. Porque se a nossa sociedade vê a maioria das pessoas como sendo impunes, isto fica introjetado na nossa sociedade. Tanto que vemos pessoas que pareciam impassíveis de corrupção e hoje estão envolvidas. A impunidade está arraigada no nosso íntimo, na nossa consciência de como a sociedade é. Precisamos mudar isso. Começando pelas pequenas transgressões, pois são os nossos filhos que estamos ensinado que pode fazer isso. Desde furar a fila ou deixar a criança pegar o brinquedo de outra. Passa por aí esta mudança de perspectiva e consciência do mundo, para depois buscarmos mudança de legislação e escolher de bons representantes públicos. É uma questão complexa, não existe uma solução única.