Desde 2017, 303 menores de idade foram flagrados com drogas pelas forças de segurança em Caxias do Sul. O levantamento foi solicitado pelo Pioneiro à Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP). Destas ocorrências, 125 foram enquadradas como uma infração análoga ou semelhante ao tráfico de drogas. No mesmo período, 29 jovens foram internados por esta infração no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) da cidade, que é referência para toda a Serra. O número de infratores internados representa apenas 23% dos flagrantes registrados por policiais em Caxias do Sul.
O transporte e a venda de drogas, uma tarefa aparentemente simples e de menor risco, é descrita como a forma de ingresso dos jovens na criminalidade, segundo o diretor socioeducativo da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), André Severo. Ele admite que os adolescentes não ficam detidos por seu envolvimento com as drogas, mas relata que esses jovens logo acabam sendo internados por crimes mais graves, como roubos à mão armada e homicídios.
— O tráfico é a entrada, a porta mais fácil. Existe um dito das polícias que o cidadão prefere ser assaltado por uma ladrão mais experiente do que por um menino. O jovem, ao se sentir ameaçado, vai acionar o gatilho. O mais velho irá pensar uma, duas ou dez vezes antes de atirar. Esses meninos são doutrinados para pensar que não tem nada a perder, que por serem adolescentes, a pena será mais branda, que ir para a Fase não dá nada. Depois de dentro do grupo criminoso, o jovem começa a querer status. Eles têm uma espécie de metas dentro do crime organizado para cumprir e ascender — aponta Severo.
A solução para evitar que jovens entrem no mundo do crime está ligada diretamente com políticas públicas - pela melhoria e prática delas. O discurso é antigo e provavelmente será repetido durante o período eleitoral que se aproxima. Enquanto isso, cada vez mais adolescentes são envolvidos pelo narcotráfico. Segundo a Polícia Civil, a maioria destes jovens é detida em flagrante durante incursões da Brigada Militar em locais de vendas de drogas.
— Os adolescentes aparecem como uma linha de frente da traficância. Nunca atuam na organização, sempre nessa primeira linha, como a venda e proteção de um ponto de tráfico, muitas vezes com a arma de fogo. A maioria são rapazes entre 15 e 17 anos — aponta o delegado Caio Marcio Fernandes, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
Legislação não aborda a complexidade do tema
Além da falta de política públicas, a legislação sobre menores de idade também não trata o narcotráfico com a dimensão que é enfrentada nas ruas pelos policiais. O baixo de número de internações de jovens infratores por tráfico tem uma explicação no Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o juiz do Juizado da Infância e Juventude, Guilherme Lopes Alves Pereira:
— Há entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de que a prática, por si só, não conduz obrigatoriamente a aplicação de medida socioeducativa de internação ao adolescente. A apreensão do menor envolvido no tráfico de drogas, a depender da gravidade concreta, enseja aplicação de outras medidas socioeducativas, por exemplo, a liberdade assistida.
O promotor Gílson Borguedulff Medeiros também salienta que, não sendo caso de internação do adolescente, poderá ser aplicada a remissão cumulada com medidas socioeducativas, como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida.
— Tudo depende das circunstâncias e do perfil do adolescente envolvido. Nos casos envolvendo narcotráfico, a internação poderá ser uma das medidas aplicadas, e não ocorre, necessariamente, em todos os casos justamente em razões das circunstâncias do fato, ausência de antecedentes e perfil do adolescente, por exemplo.
O QUE DEVE SER FEITO?
Autoridades opinam sobre como reduzir o número de adolescentes envolvidos com o uso e o tráfico de drogas:
— Políticas públicas voltadas à educação, seria o começo. Naturalmente que o Poder Público tem que buscar inserir os adolescentes no mercado de trabalho, para que estes possam idealizar um futuro longe da criminalidade.
Guilherme Lopes Alves Pereira, juiz do Juizado da Infância e Juventude
— A política pública de combate ao narcotráfico envolvendo adolescentes passa pela educação, prevenção e repressão, sem dúvida. A frequência escolar, ainda que virtual, a oportunidade de trabalho lícito, a estrutura e acompanhamento familiar atento, além da oportunidade de pertencimento (associações regulares, grupos de formação e serviços, por exemplo) muito auxiliam ao afastamento da senda da delinquência juvenil.
Gílson Borguedulff Medeiros, promotor de Justiça
— Política pública e que seja eficaz na área de saúde mental junto aos municípios. Somos muito carentes de políticas públicas voltadas ao controle e tratamento da drogadição. A falta de alimento e até de atenção da família, o jovem busca na droga. Quem almeja um cargo na próxima eleição, precisa fomentar esta política pública voltada para a criança e o adolescente contra o tráfico de drogas.
André Severo, diretor socioeducativo da Fase
— Reformulação dos valores. Muitas pessoas vêm na figura do traficante uma forma de poder, ascensão econômica e "se dar bem na vida". Há inúmeras obras fictícias e de arte em que o traficante é vangloriado, romantizado, é um anti-herói. Isso acaba por gerar um descompasso de valores. As pessoas precisam ter esta dimensão de que, o ganho econômico (do tráfico) pode ser rápido, mas não é algo efetivo e não irá criar uma vida sólida. É uma falsa sensação. É algo transitório, ilusório e muito efêmero.
Caio Marcio Fernandes, delegado titular da DPCA de Caxias do Sul
Em todo o Estado, 13,6 mil jovens foram flagrados com drogas
Apesar de adolescentes serem muitos presentes como autores de crimes graves relacionados ao tráfico de drogas como homicídios e até uma chacina no bairro Planalto em 2018, os números de Caxias do Sul representam apenas 2,2% do cenário estadual. Em todo o Rio Grande do Sul, 13.603 menores de idade foram flagrados com drogas entre janeiro de 2017 e junho deste ano. Os números variam ao longo dos meses. O pico aconteceu em abril de 2019, quando foram 399 jovens apreendidos, sendo 195 deles por tráfico de drogas. A quantidade teve uma queda significa e baixo do patamar de 300 ocorrências mensais a partir no final de 2019, mas voltaram a apresentar crescimento a partir de março _ período que a pandemia de coronavírus chegou no Estado.
A tendência não se repetiu em Caxias do Sul. Foram apenas 31 jovens flagrados com drogas neste ano. É a menor média mensal dos últimos quatro anos. De acordo com a SSP, os números estão em queda desde 2017. Ainda assim, o fechamento de escolas na pandemia preocupa as autoridades da cidade, pois é uma referência perdida pelo jovem. No entanto, a opinião é que a covid-19 e a crise financeira não são os fatores mais influentes para adolescentes decidirem se envolverem com drogas.
— Dificuldade financeira não quer dizer envolvimento com o mundo da criminalidade. Vai muito mais da índole, da educação e da personalidade de cada pessoa, o que inclui adolescentes. (O aumento) pode ser uma questão aleatória, que não tem vinculação necessariamente com a pandemia. Neste período, diminuíram as ocorrências atendidas pessoalmente pela Brigada e Polícia Civil e, assim, foi possível as polícias intensificarem alguns pontos de atuação, como o tráfico de drogas. Quanto mais ações policiais, mais apreensões acontecem — pondera o delegado Fernandes.
O juiz Pereira concorda que a ociosidade dos jovens é um fator preocupante, mas destaca a falta de estrutura familiar como um dos elementos que influenciam para inserção do menor na criminalidade.
— A frequência escolar, ainda que virtual, a oportunidade de trabalho lícito, a estrutura e o acompanhamento familiar atento, além da oportunidade de pertencimento (associações regulares, grupos de formação e serviços, por exemplo) muito auxiliam ao afastamento da senda da delinquência juvenil — corrobora o promotor Medeiros.
O diretor da Fase relata que existem jovens que entram para a delinquência pela falta de alimento e outros bens em casa, mas que esta não é a regra. O que os jovens procuram está mais ligado a sua saúde mental. O isolamento de bairros vulneráveis fazem os jovens enxergarem o traficante como um líder comunitário.
— O que atrai é o pertencimento, que falta até na família, onde não recebe a atenção de um responsável. O pai é uma figura bastante ausente nos adolescentes que atendemos, é um problema histórico. Depois, vem a ostentação. Eles querem um tênis, um celular e andar com roupa de grife. O jovem vê o traficante com um carrão, corrente de ouro e as meninas mais lindas da comunidade. A imagem é de que o crime compensa. É algo de momento, muito curto, mas é o que o adolescente vê. A família tenta orientar, mas o cotidiano dele na comunidade mostra essa realidade distorcida — aponta Severo.
Criar laços sociais é alternativa preventiva
Diante da falta de políticas públicas, são voluntários que tentam fazer a diferença em comunidades vulneráveis. São histórias como de Cassia Purper, 44, que há 16 anos oferece suporte às famílias e atividades para crianças e adolescentes no loteamento Monte Carmelo, zona sul de Caxias do Sul. No ano passado, o empenho da voluntária em busca de parcerias resultou na entrega de uma biblioteca infantil à comunidade. A cada doação, a sede da ONG Carmelo cresce e vira referência de uma outra realidade possível.
— Para afastar um jovem do tráfico, é preciso dar responsabilidade e uma ocupação. É criar laços. Estas crianças não tem o que fazer e ficam andando pelas ruas, onde são alvos fáceis. No início, o traficante é um paizão, ele quer ganhar a confiança. Depois, vira um pesadelo. O início é simples, como levar um pacote, que leva a se envolverem em pequenos furtos e depois roubos. É uma sequência, cada passo leva a um passo maior nessa criminalidade que aumenta cada vez mais na cidade por meio de jovens — relata Cassia.
A voluntária relata que, em periferias, o uso de drogas começa aos nove anos. Muitas crianças já estão expostas a violência em sua casa, seja por um pai ausente, um irmão que é usuário ou um primo já envolvido na criminalidade.
— Pobreza é um problema, mas não é o que leva à criança para as drogas. O problema é a falta do exemplo em casa, da orientação, desse alicerce para o seu crescimento. É preciso identificar uma criança que está exposta e falar com os pais e responsáveis sobre o que é a droga, o que o adolescente pensa, porque ele prefere estar na rua do que em casa. Não adianta trabalhar o jovem sem trabalhar a família. Porque quando ele sai da ONG e chega em casa, a realidade é outra — opina a voluntária.
Retirar as crianças das ruas e mostrar uma outra realidade também é a missão do Centro Assistencial e Proteção Social (Caps) Joana D'Arc, na Zona Norte. Em 18 anos, a entidade já apoiou mais de 600 jovens entre seis e 15 anos nos bairros Santa Fé e Vila Ipê. A gerente de projetos Vanessa de Oliveira, 36, aponta que o desafio do projeto é mostrar que existem outros caminhos e, assim inspirar sonhos.
— Tirar das ruas é descobrir os talentos e aptidões destas crianças. As atividades desenvolvem as capacidades e, assim, o jovem começa a encontrar o seu caminho. Começa a entender o que é uma vida profissional e como pode chegar até lá. Entender o caminho de educação para virar um médico, um advogado. O nosso principal objetivo é plantar esta semente, que o jovem poderá seguir e se desenvolver — comenta.
OCIOSIDADE
Para os voluntários, o que torna um bairro vulnerável é a falta de envolvimento das crianças e adolescentes. Em comunidades de baixa renda, os pais precisam passar o dia fora trabalhando pelo sustento da família. Ociosos, os jovens acabam por observar maus exemplos. Portanto, a política pública necessária é oferecer atividades aos jovens que desenvolvam seus gostos e os aproximem de bons cidadãos.
— Acredito fortemente na educação. As crianças mais vulneráveis são as que têm uma família desestruturada. Nem todas as escolas conseguem fazer a assistência social, de buscar entender o porquê do comportamento daquela criança. É preciso ter projetos para ajudar estas crianças e encaminhar estes jovens na direção de um trabalho. O que vemos é muitos saírem do Ensino Médio sem saber para onde ir, aí acabam indo para "caminho fácil" do tráfico. É preciso tirar os jovens das ruas, onde ficam ociosos e vulneráveis — opina Vanessa.
Enquanto esquecidos, os jovens continuarão a ser atraídos pelo traficante e o ciclo de violência prosseguirá a se espalhar pela cidade. Cássia lembra que, depois de recrutado, fica mais difícil tirar um jovem desta realidade, principalmente quando envolve a dependência química.
— É mais difícil trabalhar nas consequências. E é muito sofrimento. Temos que trabalhar na causa. O que leva os adolescentes para as drogas? Nas conversas, vemos que começa lá na infância. É preciso um trabalho nas escolas municipais, nas séries iniciais, que é lá o primeiro contato das crianças com este mundo de aprendizado. É pegar essa galerinha e oferecer um vínculo. Se a criança tem um suporte, um exemplo em quem confiar, o traficante pode oferecer que a criança não aceitará drogas. No nosso dia a dia, vemos que funciona.
ADOLESCENTES FLAGRADOS COM DROGAS EM CAXIAS
Casos de tráfico ou posse de entorpecentes:
2017 - 111
2018 - 87
2019 - 74
2020* - 31
Fonte: SSP / *até junho