A primeira semana da nova Lei de Abuso de Autoridade (13.869/19) foi de incerteza para delegados e policiais. Oficialmente, Brigada Militar (BM) e Polícia Civil manifestam que não haverá grandes mudanças em policiamento e investigações, pois as novas regras já eram respeitadas pelos agentes. Nos bastidores, o temor é que a nova legislação beneficie criminosos que buscam a anulação de provas e processos.
Neste sentido, a delegacia de plantão de Caxias do Sul estuda a aquisição de câmeras para gravar depoimentos e interrogatórios. O procedimento já acontece em outros locais, mas para a Polícia Civil gaúcha sempre faltou estrutura. As gravações serviriam como provas diante de possíveis denúncias de presos que dizem ter sido agredidos e obrigados a confessar ou incriminar comparsas. Essas acusações são corriqueiras em processos criminais.
— Estávamos acostumados, pois a maioria dizia que foi forçada a falar. Não há muito como provar, mas tentaremos deixar ainda mais claro todos os procedimentos. Se for um caso mais rumoroso, acreditamos que o ideal é gravar. (Com a nova lei) é preciso se resguardar. Antes, se fosse acusado de alguma conduta, era uma irregularidade, o procedimento era mais simples para se defender. Agora, é crime — aponta o delegado Vitor Carnaúba, titular da 1ª Delegacia de Polícia (1ª DP) e da Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPA).
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Na prática, a primeira mudança foi uma restrição na divulgação de informações da segurança pública à imprensa. Na Serra, BM e Polícia Civil pararam de divulgar dados pessoais de presos. Foi vetada a divulgação de boletins de ocorrências criminais, algo que era rotineiro antes da nova Lei de Abuso. Alguns policiais se dispõem a relatar os fatos ocorridos, mas decidiram evitar nomes. Da mesma forma, não são publicadas imagens em que apareçam presos ou suspeitos — nem de costas.
O entendimento é que tal conduta se enquadra como "atos de constranger o detento a exibir seu corpo à curiosidade pública" ou "de divulgar a imagem ou nome de alguém, apontando-o como culpado". Agora isso pode levar uma autoridade a ser punida com penas de um a quatro anos de detenção e de seis meses a dois anos, respectivamente. Como efeito colateral, a população não fica mais sabendo dos crimes que acontecem na cidade como roubos, estelionatos e estupros.
O objetivo principal, confirma a chefe de Polícia, delegada Nadine Anflor, é evitar disseminação de situações vexatórias aos suspeitos nas redes sociais.
— Nada impede, no entanto, que jornalistas fotografem ou filmem a condução de presos, investigados e indiciados nos locais de busca ou prisão. Continuaremos, inclusive, a informar nossas ações, porque não queremos que nossas operações sejam invisíveis. Confiamos que haverá bom senso ao expor os conduzidos — resume Nadine.
Titular da 1ª Vara Criminal de Caxias do Sul, o juiz Max Akira Senda de Brito, vê a criação da lei como uma maneira de cercear o trabalho de policiais, juízes e promotores. Para ele, tanto a questão da norma do abuso de autoridade quanto o Pacote Anticrime (que inclui o juiz de garantias) não vêm em benefício da sociedade.
— Essa lei foi criada num contexto político. É casuística. Na prática, já existia uma lei que previa punição em caso de abuso de autoridade. A nova desperta um temor no exercício da atividade-fim. Os juízes poderão ter mais cuidados na hora de proferir decisões, mas vou seguir decidindo normalmente, como sempre fiz, não vou mudar nada. Claro que se corre o risco de alguém acusar de um juiz de abuso. Eu não tenho receio, pois sei que não vou praticar nenhum crime, mas posso me incomodar porque vou ter que buscar uma defesa. Será então um instrumento para coagir e tentar fazer com que um juiz deixe de fazer ou seja leniente — avalia o magistrado.
MUDANÇA
:: A lei, como apresentada em primeiro artigo, define os crimes cometidos por agente público que, no exercício de suas funções, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
:: Passam a ser crimes ações que até então eram consideradas infrações administrativas ou atos ilícitos punidos no âmbito cível.
:: O texto, criticado por juristas e magistrados quando foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), define cerca de 30 situações que configuram abuso de autoridade.
PONTOS QUE PODEM PREJUDICAR A INVESTIGAÇÃO
:: Denúncias anônimas — por não terem fonte confiável, passam a ser alvo de discussão sobre possível perseguição.
:: Divulgação de imagens — a divulgação da prisão de suspeitos de vários crimes, como ladrões de farmácia ou especialistas em golpe de bilhete premiado, permitia que outras vítimas reconhecessem os bandidos e também procurassem a Polícia Civil, o que fazia que bandidos contumazes de crimes com menor pena ficassem mais tempo presos. Essa estratégia era utilizada após a conclusão do inquérito policial, ou seja, quando as provas já estavam coletadas e o delegado possuía convicção da culpa do indiciado.
:: Depoimentos — proibidos à noite. Será uma estratégia de defesa. A regra de horário não se aplica em prisões em flagrante.
:: Condução coercitiva — durante as buscas na região de um crime, um policial poderia encontrar uma pessoa em atitude suspeita e, mesmo sem uma prova da autoria, encaminhá-la para esclarecimentos na delegacia. Este tipo de condução, agora, é considerada crime. O receio é que agora os policiais até abordem o autor de um crime, mas precisem liberá-lo sem poder ouvi-lo oficialmente e sem qualquer registro oficial de que o suspeito estava naquela hora e local.
Jurista avalia alguns artigos da lei
Ivandro Bitencourt Feijó, advogado criminalista e secretário-geral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção Caxias do Sul, aborda alguns artigos da lei de abuso de autoridade e analisa o que há de concreto a partir da experiência de quem tem trânsito em delegacias de polícia e tribunais. A ótica do jurista é importante, pois os advogados agora estão sendo vistos como personagens cruciais dessa nova fase do Direito Penal no Brasil. Para Feijó, o debate em torno do assunto está gerando um alvoroço por conta de um impacto que não será tão grande como se imagina especialmente no trabalho da polícia.
— A lei tem muita coisa repetida de outras leis. Hoje temos um novo nome, que é concatenação de diversos tipos — frisa.
Feijó, porém, ressalta que a nova norma poderia servir incentivo e parâmetro para a modernização do trabalho policial, o que passa pelo Estado.
:: Abuso de autoridade e de poder
O abuso de autoridade e poder está configurado quando um agente público se prevalece do cargo para satisfazer sua vontade em prejuízo de terceiros. Ou seja, os interesses particulares são colocados a cima da lei. Um exemplo desta conduta é o caso do Bruxo, que resultou na prisão de inocentes acusados de matar e esquartejar duas crianças em Novo Hamburgo, em 2018, em um suposto ritual de magia negra nunca comprovado. O delegado que investigava o caso se valeu de motivos religiosos de sua crença para atribuir responsabilidade penal a pessoas de outro credo.
:: Não comunicar detenção para a família do preso
A comunicação da prisão a familiares de detidos está prevista na Constituição. Esse dispositivo foi inserido em razão de prisões arbitrárias de cidadãos ligados à política, fato comum no período em que o Brasil viveu a Ditadura Militar. A Constituição estabeleceu a garantia de que alguém de confiança do preso tomasse ciência da prisão e, desta forma, pudesse acompanhar os atos legais seguintes e saber quais foram os motivos que levaram o cerceamento da liberdade. Claro que isso não significa que a autoridade policial precisa, de qualquer forma, localizar alguém que possa tomar ciência dos fatos. A conduta atacada pela lei é de dolosamente não permitir que haja a tentativa de informar o ocorrido.
:: Insistir em interrogatório de pessoa que optou por se manter calado
A opção de ficar em silêncio é uma garantia de toda e qualquer pessoa que responde a um processo penal. Sendo assim, o fato de não se manifestar jamais poderá ser usado em seu prejuízo. A insistência e a formulação de perguntas em um julgamento onde sabidamente não haverá resposta, uma vez que o silencio já havia sido comunicado, estará configurado o prejuízo ao processado. Quantas vezes no Senado Federal, em CPIs, mesmo diante da negativa de responder a perguntas, o processado é submetido a uma sabatina de horas com diversas perguntas que não serão respondidas. Imaginemos essa situação no Tribunal do Júri, onde o réu será julgado por pessoas da comunidade e que podem entender que a adoção do silêncio diante das perguntas seja admissão da autoria do crime.
:: Decretar prisão fora das hipóteses legais/ Não relaxar prisão ilegal/Deixar de substituir prisão preventiva por medidas cautelares mais brandas
No caso de alguém ser preso e levado à delegacia por um crime de menor potencial ofensivo, onde a manutenção da privação de liberdade não seja compatível com os dispositivos da prisão cautelar (prisão preventiva) a ação dolosa de quem mantém o acusado privado de liberdade se enquadra na hipótese de abuso de autoridade. Por outro lado, a prisão de alguém com base em argumentos ou fatos que não configuram crime será uma prisão ilegal. A autoridade que não relaxar a prisão está incorrendo em abuso de autoridade, como ocorreu em crimes de reunião política durante a Ditadura Militar, isto é, pessoas ficavam presas pelo simples fato de participar de encontros com finalidade política.
A prisão preventiva é a segurança jurídica ao processo penal nas hipóteses previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal. Essa segurança deve ser vista pela contemporaneidade dos requisitos com o trâmite processual sem a interferência de quem teve a prisão decretada, não sendo uma antecipação de pena. Importante destacar que a liberdade, enquanto não houver sentença penal com trânsito em julgado, é a regra. Contudo, a lei também determinou que dentro de um prazo razoável seja revista caso não ocorra o encerramento da instrução processual. Este é o ponto mais sensível estabelecido pela nova lei, que pode interferir na autonomia do magistrado, o que certamente será alvo de questionamento judicial referente à validade e à constitucionalidade da conduta prevista na lei.
:: Constranger a depor pessoa que tem dever funcional de sigilo
Existe uma gama de profissões em que o sigilo é fundamental ou necessário para que ela seja exercida. É o caso de jornalista com o sigilo da fonte, os psicólogos com a narrativa de seus pacientes, o padre com a confissão dos pecados e muitas outras atividades profissionais, nas quais o advogado também se inclui. Façamos o seguinte exercício: o advogado "A" defende os interesses de uma pessoa e é intimada por alguma autoridade para dar esclarecimentos sobre a atividade de seu cliente, passando a ocupar a posição de testemunha ou de investigado, quebrando a ética e o sigilo profissional.
:: Não se identificar como policial durante ação de captura/ Não se identificar como policial durante interrogatório
É direito do alvo de qualquer operação policial que não esteja protegida pelo segredo de Justiça saber que são policiais de determinada corporação, unidade ou delegacia que estão realizando tal diligência. Claro que existem hipóteses legais que garantem o anonimato, mas são questões específicas e com autorização judicial.
:: Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ou inquérito
Em Caxias do Sul, as autoridades policiais respeitam o exercício da advocacia. Entretanto, algumas exigências, como por exemplo, exigir uma petição, com procuração, solicitando acesso ao inquérito contraria a prerrogativa do advogado em ter vista ao procedimento mesmo sem procuração. Outro problema existente, e que vem apresentado evolução, mesmo ainda sendo recorrente em algumas unidades, são os inquéritos sem a devida autuação (organização e numeração de folhas), o que indica a ordem cronológica do trabalho investigativo.
:: Insistir em interrogatório, sem que o advogado esteja presente, mesmo quando a pessoa exigiu advogado
Até 2015, o Rio Grande do Sul era o único Estado que garantia assistência jurídica no Auto de Prisão em Flagrante. Tal prática não só respeita o preso em flagrante como também dá segurança aos atos policiais. Em Caxias, havia convênio entre polícia e OAB, em que advogados interessados em atuar de forma gratuita nos feitos policiais se inscreviam. Com o passar do tempo, houve uma nova interpretação em que a presença do advogado era necessária quando o preso solicitasse, e daí retornamos à questão sobre a comunicação da prisão à família, que, via de regra, é quem contrata o defensor.