Com nove mortes violentas neste ano, seis a mais do que todo 2018, Bom Jesus – município dos Campos de Cima da Serra, distante 125 quilômetros de Caxias do Sul – vive uma onda de assassinatos que tira o sossego dos moradores. Apesar de a maioria das situações ter sido motivada por algo específico, o cenário de violência fez com que muitos habitantes mudassem hábitos simples como ir sozinho do trabalho para casa no final do expediente, sair de casa à noite ou frequentar a praça central, por exemplo.
Em um cálculo rápido, tendo nove casos (incluindo, homicídios, latrocínios e feminicídios) em nove meses, a média é de uma morte a cada mês. Fazendo uma projeção, seriam 12 no ano. Considerando a população estimada para 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 11,3 mil habitantes, equivaleria dizer que Bom Jesus tem um índice de 106 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Para se ter uma ideia, o índice atual de Caxias do Sul, que contabiliza 68 mortes violentas é de 13,3.
– Em número de furtos, roubos e de ocorrências em geral está na média dos últimos anos. O que destoou, neste ano, é o número de homicídios, com maior índice no Estado – constatou Carlos Alberto Defaveri, que comanda a 25 ª Delegacia Regional da Polícia Civil, que abrange a cidade.
Assustada diante do salto no número de mortes, a população se organizou para tentar reagir. Os órgãos relacionados à segurança pública e da sociedade civil formaram uma comissão pró-segurança e a comunidade fez um abaixo-assinado que teve a participação de cerca de 10% da população do município. O pedido é por mais policiais militares e civis e por um delegado titular para a cidade.
– Em função de todo esse problema (déficit de efetivo) e do crescente problema social em Bom Jesus, em decorrência do crack, estamos enfrentando algo que jamais tivemos, que é esse número alarmante de homicídios e feminicídios. A praça sempre foi ponto de encontro nos finais de semana, onde os familiares se reuniam para tomar chimarrão, as crianças andavam de bicicleta e, hoje, está tomada por essas pessoas que vêm se drogar, tomar bebidas alcoólicas. Hoje, temos receio de sair à noite. Estamos vivendo em uma cidade pequena com todos os cuidados e medos de uma cidade grande, infelizmente. Mas estamos trabalhando para reverter essa situação – observou o presidente da subseção da OAB de Bom Jesus, Juliano Grazziotin, que encabeça a comissão.
A partir de uma postagem em rede social, a moradora Neidi Talita Borges da Silva, de 38 anos, deu o alerta de que Bom Jesus pedia socorro e viu se formar um coro da comunidade por mais segurança em um movimento que reuniu mais de mil assinaturas.
– Coloquei uma postagem no Facebook que a gente não pode desistir de Bom Jesus e teve uma repercussão muito grande. Várias pessoas demonstrando que têm interesse em ajudar, mas não sabem o que fazer. Daí, eu disse: quem sabe a gente faz um abaixo-assinado porque a gente reúne forças para pedir mais policiamento, para que a gente lute por Bom Jesus – contou Talita.
No domingo, haverá um ato pela paz, na Praça Rio Branco, a partir das 15h.
Déficit de efetivo na segurança é fator mais apontado por moradores
A estrutura das forças de segurança são deficitárias em Bom Jesus. São quatro policiais civis e dois estagiários. O delegado Vitor Boff, sediado em Vacaria, responde pela delegacia do município vizinho desde maio de 2018, quando o antigo delegado se aposentou. A DP funciona em horário de expediente, de segunda a sexta-feira. Fora desse período, é preciso deslocar até Vacaria, distante 60 quilômetros. Aos finais de semana, uma equipe volante de Vacaria auxilia nas ocorrências e os três delegados da Delegacia de Pronto-Atendimento de Vacaria se alternam nos plantões.
– Embora tenham acontecido todos esses casos que tiveram repercussão significativa, porque é um município pequeno e a proporção de homicídios em tão pouco tempo impacta bastante, ressaltamos que só um desses casos está pendente. A resolutividade é muito alta – declarou Boff.
Não são raras as vezes em que os únicos dois policiais militares que atendem em um turno no posto da cidade têm de ir levar presos à delegacia de Vacaria deixando a cidade sem policiamento.
– Estamos com uma defasagem muito alta, de mais de 50%. Precisaríamos ter 21 e estamos com nove. Se consegue manter dois por turno (de 24 horas). E nos finais de semana, quando é mais complicado, reforçamos com horas extras. Temos apoio também de Vacaria. Só que o grande problema não é a violência na cidade, o assalto e o roubo a pedestre ou a estabelecimento, são esses conflitos que estão gerando homicídios – diz o tenente da Brigada Militar, Ricardo Snitowski Bassan.
Os assuntos serão levados por representantes da comissão para uma reunião com secretário de Segurança do Estado e vice-governador, Ranolfo Vieira Júnior, no dia 16 de outubro, às 14h30min. Outras duas datas haviam sido agendadas e foram desmarcadas pelo governo. Questionado sobre as demandas de Bom Jesus durante a passagem por Bento Gonçalves na última quarta-feira, Vieira Júnior, disse que iria verificar a questão do pedido por um delegado, mas que não tinha a informação no momento.
"Se resolve tudo na faca", disse comandante da BM
Bom Jesus chegou a ter mais de 30 mil habitantes até que, a partir da década de 1960, a derrocada do ciclo da madeira causou esvaziamento e empobrecimento da cidade. Para o delegado Carlos Alberto Defaveri, titular da regional da Polícia Civil, apontar origens da criminalidade demandaria um estudo mais aprofundado, mas ele acredita que as causas estão relacionadas a questões como emprego, lazer, atividades de turno inverso para estudantes, "questões que desenvolvem uma cidade e evitam a vulnerabilidade" e não às origens da população. Defaveri acredita ainda que a violência ou crueldade empregada tem relação com o uso de crack.
A opinião é compartilhada pela Brigada Militar local que afirma que esses crimes, especificamente, não tem relação com policiamento, apesar do déficit de pessoal. O comandante da BM em Bom Jesus, tenente Ricardo Snitowski Bassan, diz que a quantidade de furtos e roubos é considerada pequena na cidade e a maioria dos assassinatos tem como pano de fundo o consumo de drogas. Em pelo menos quatro havia envolvimento, ou de autores ou de vítimas.
A reportagem conversou com o tenente e um grupo de policiais militares na cidade na última quarta-feira. Eles confirmam que a mudança no cenário no município ocorreu neste ano, mas afirmam que o comércio de drogas tem sido combatido. Segundo a BM, nos primeiros meses de 2019, haviam cerca de 15 pontos de tráfico mapeados e, atualmente, são, no máximo, três, que seriam mantidos por traficantes locais não pertencentes a facções.
– Nosso trabalho que é prender eles (traficantes) quando pegamos em situação de flagrante, a gente tem feito – disse o soldado Rafael Santos Paim.
– Esses homicídios era praticamente impossível de ter evitado com policiamento. Está sendo mais um problema social da cidade do que de segurança – avalia o soldado André Remonte.
Eles referem que em um dos casos a viatura tinha passado pelo local 10 minutos antes do crime.
– É um pouco cultural da formação da cidade porque vêm pessoas de diversos estados para cá. Isso a gente nota: se resolve tudo na faca – ponderou o tenente.
Para o presidente da subseção da OAB de Bom Jesus, Juliano Grazziotin, também não se trata de um comportamento da população original de Bom Jesus, mas sim de uma questão social causada pela sazonalidade do emprego. A agricultura emprega nas épocas de safra e nos períodos de entressafra as pessoas ficam sem trabalho, sem dinheiro e suscetíveis a serem cooptadas pelo tráfico. Além disso, o município também esbarra na questão financeira para investimentos. Somado a isso, a cidade recebe muita gente de outros estados e que tem problemas na justiça.
Crimes com requintes de crueldade
Dos oito casos de assassinatos deste ano, que resultaram em nove vítimas, dois chamaram a atenção e assustaram a comunidade pela crueldade empregada. Ambos têm pessoas envolvidas com o tráfico de drogas. Em um deles, uma jovem de 21 anos que, segundo a polícia, se relacionava com integrante de facção criminosa da Região Metropolitana, foi morta pelos traficantes, teve partes do corpo cortadas e queimadas e foi abandonada em um matagal no interior. No local, uma cruz de madeira e uma coroa de arame farpado indica o local do crime.
Em outro caso, o autor, dependente químico, matou os pais para roubar objetos e trocar por drogas, conforme apontou a a investigação. O senhor João da Silva Fonseca, 69 anos, é irmão de Maria do Carmo Fonseca da Silva, 57 anos, morta pelo filho em 14 de junho. Foi ele que, depois de quase dois dias sem notícias da irmã e do cunhado, encontrou os corpos das vítimas. O filho, Mateus Fonseca da Silva, teria admitido a autoria do crime à polícia e está preso desde então. Ele esperou os pais adormecerem, esfaqueou o pai e atirou e degolou a mãe. No quarto da pequena casa de madeira, as marcas do crime ainda estão nas tábuas da parede e assoalho. Seu João continua prestando serviços na fazenda, onde as vítimas eram caseiros.
– A gente ligava, ligava eles não atendiam. Passou quase dois dias, peguei o carro e vim aqui. Cheguei, achei a garagem aberta, o carro não estava e eles mortos – contou João.
Quando a polícia chegou, o autor confesso estava na estrada que dá acesso à fazenda. Tinha voltado ao local do crime, possivelmente, para buscar mais objetos.
– Aqui não dá mais. Ninguém está seguro de noite. De dia ainda passa, mas de noite não dá nem para abrir a porta – disse Adão Paim da Silva, 74 anos, morador das redondezas.
No final de semana passado, outro crime chocou os moradores de Bom Jesus pela violência. Sebastião da Silva Boeno, de 75 anos, foi atropelado na ERS-110. A família da vítima conta que ele estava cortando uma árvore que ameaçava cair sobre a casa nos fundos do pátio e acabou a gasolina da motosserra. Ele caminhava pelo acostamento da rodovia em direção ao posto de combustíveis, quando foi atingido por um carro que participava de um racha. Em reação ao crime, familiares do idoso incendiaram o carro e depredaram a casa do motorista que havia fugido do local. Os parentes ainda encontraram e agrediram o condutor do outro carro que participou o racha.
Os crimes deste ano em Bom Jesus:
1. João Batista Boeira Camargo, 85 anos
Data: 6 de janeiro
Meio: Sufocamento
Esclarecido: Sim
Presa: Janilda Aparecida Fernandes
Apreendidos: dois adolescentes
Como: Dois adolescente de 17 anos confessaram ter sido contratados para assaltar o idoso que teria dinheiro guardado em casa. A mandante do crime seria uma funcionária do idoso, que também estava presente na noite do crime.
2. Geann Carlos Machado da Silva, 23 anos
Data: 11 de fevereiro
Meio: Faca
Esclarecido: Sim
Apreendido: um adolescente
Como: O homicídio teria se originado de uma briga entre a vítima e um jovem de 16 anos, que fugiu do local após ferir Machado. Crime ocorreu na praça.
3. Kleber Melo Marafigo, 24 anos
Data: 17 de março
Meio: faca
Esclarecido: Sim
Preso: Não
Como: Ferido em briga de bar acabou caindo dentro do pátio da BM na cidade (que tinha saído para atendimento de ocorrência).
4. Patricia Marques Muller, 21 anos
Data: 9 de maio
Meio: Ferramentas cortantes
Esclarecido: Sim
Presos: Douglas Cordova Borges, Lucas Rodrigo da Silva Velleda, Tobias Almeida Santos
Como: Corpo da jovem foi encontrado na estrada da Mandassaia, localidade distante a quatro quilômetros do município, por trabalhadores de obras da RS-110. Ela teve partes do corpo cortadas e queimada por causa do tráfico de drogas.
5. Gomercindo Rodrigues da Silva Filho, 61 anos
6. Maria do Carmo Fonseca da Silva, 57 anos
Data: 14 de junho
Meio: Faca e tiro
Esclarecido: Sim
Preso: Mateus Fonseca da Silva
Como: O dependente químico em crack Mateus Fonseca da Silva matou os pais na sede de uma fazenda, no interior, onde eles eram caseiros, para roubar objetos já que eles negaram dar dinheiro para comprar drogas.
7. Manoel Antônio Branco dos Passos
Data: 18 de abril
Meio: faca e tiro
Esclarecido: Sim
Autor responde em liberdade: Edson Firmino Borges
Como: Briga entre amigos após discussão em um bar. Edson esfaqueou Manoel, levou ele e o filho dele (uma criança) até uma localidade distante da cidade onde os deixou. O filho pediu socorro. A vítima ficou hospitalizada, mas não resistiu.
8. Gabrielle Paim da Silva, 18 anos
Data: 28 de julho
Meio: Tiro
Esclarecido: Sim
Preso: Vilmar Antunes Prado
Como: Gabrielle chegava em casa com uma amiga quando foi agredida e atingida a tiros pelo marido. Antes de atirar na esposa, o autor levou a filha dela até a casa de um parente nas proximidades.
9. Diego Melo de Marafigo, 19 anos
Data: 10 de agosto
Meio: Tiro
Esclarecido: Sim
Preso: Emerson Kramer Boeira
Como: O homicídio aconteceu, por volta das 2h20min, na Avenida Manoel Silveira de Azevedo, em frente a boate Flash Dance, na Vila Santa Catarina. O dono da boate saiu da casa noturna e disparou contra Marafigo.