Até meados de 1990, 55% dos apenados sob a responsabilidade da Vara de Execuções Criminais cumpriam pena por roubos e homicídios, apontou o estudo O perfil do delinquente no município de Caxias do Sul (de Agostinho Koppe Pereira, Denise Kempf, Paulo Weschenfelder e Roberto Sbravatti). Delitos que envolviam tráfico correspondiam a 6,5% dos casos, quase nada se comparado aos números de hoje — atualmente, 354 pessoas cumprem pena em regime fechado por envolvimento com o comércio de drogas, sendo esse o segundo delito com mais apenados recolhidos na duas cadeias de Caxias.
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O jornalista Daniel Corrêa, autor da série de reportagens O flagelo das drogas, mapeou o estrago da maconha e da cocaína nas famílias em 1996. Ao colher depoimentos de usuários, percebeu uma novidade letal.
— O pessoal que estava no meio indicava que o crack já havia surgido, mesmo que fossem pequenas as apreensões, nas principais cidades do Estado, principalmente em Caxias do Sul — recorda.
Foi em 1997, porém, que Polícia Civil, Brigada Militar e Polícia Federal (PF) realizaram as primeiras apreensões e prisões relacionadas à droga altamente viciante. As autoridades ainda não cogitavam o crack como fator de agravamento da insegurança e dos problemas sociais. Os traficantes perceberam que era mais fácil fidelizar a clientela de viciados com uma droga mais barata e muito mais potente do que com a cocaína e a maconha, na avaliação de Corrêa.
No ano seguinte, as comunidades terapêuticas identificavam o alarmante crescimento de dependentes de crack buscando ajuda e a polícia dobrava o volume de apreensões. O ritmo era alucinante e contrariava as expectativas.
— Passamos a ver pessoas consumindo a droga na rua, mesmo que isoladamente. Eram potenciais latrocidas, e isso passou a assustar — comenta Corrêa.
Com a difusão das pedras feitas com restos de cocaína e produtos químicos, a violência passou a ter dois períodos distintos: antes e depois do crack.
— Há 30, 40 anos, o criminoso bebia ou fumava maconha para cometer um assalto. O crack tornou ele mais violento. Daí aumentaram os roubos a pedestres, os furtos. Embalado pela droga, teve um cara que matou três motoristas numa única noite — complementa o delegado aposentado Farnei Goulart.
O grande negócio
Conforme Corrêa, formou-se um exército de "zumbis". O impacto foi grande e os traficantes contribuíam fortemente para esse triste advento. Surgiram dezenas de pontos que ofereciam a droga, produzida nos próprios locais, e muitos viciados dispostos a arrombar empresas, casas, veículos ou assaltar para saciar a ânsia pelo crack. Diante do descontrole e da falta de opções para tratamento, era comum pais desesperados acorrentarem os filhos viciados em casa. Os crimes passionais, que antes prendiam a atenção do público, deixaram de ter interesse na cobertura jornalística.
— O foco da imprensa voltou-se para os crimes de contexto social, assaltos, latrocínios, do tráfico. A população passou a se preocupar com a segurança. Foi impactante — lembra Corrêa.
Paralelo a esse avanço dramático, os moradores passaram a adotar um comportamento defensivo.
Aos poucos, casas e empresas ganharam cercas cada vez mais altas, alarmes e seguranças particulares — em 2003, a cidade já contava com 3,2 mil empresas de vigilância e monitoramento. Um parâmetro dessa mudança de perfil é a Avenida Júlio de Castilhos, via para casais e famílias vislumbrarem vitrines das lojas em passeios noturnos durante décadas. Nos anos 2000, os estabelecimentos começaram a cerrar as grades logo ao anoitecer para evitar furtos e os passeios desapareceram. Também foi a partir da metade dos anos 2000 que o fator econômico em torno das drogas apareceu como motivação de homicídios. Surgiram as rixas de traficantes.
— É dessa droga que nasceram as disputas das facções. Ainda assim, essa violência só apareceu aqui nos últimos cinco, 10 anos. O que víamos antes disso eram as brigas entre grupos locais, que agiam isoladamente e se enfrentavam — contextualiza Paulo Roberto Rosa da Silva, delegado regional da Polícia Civil.
O cenário referido pelo policial era abastecido por distribuidores que negociavam as remessas de cocaína com fornecedores diretamente nas fronteiras. Na prática, as facções da Região Metropolitana não haviam mirado outras cidades e o mercado da Serra era repartido entre dezenas de pequenos traficantes e alguns grandes distribuidores. Ocorreram muitos assassinatos. Dos 58 homicídios de 2002, por exemplo, um ou dois tinham relação com esses desacertos. Dez anos depois, o tráfico já aparecia como a principal causa dos assassinatos de pessoas com passagens na polícia. O consumo de drogas, por sua vez, estava atrelado a uma parte dos latrocínios (roubos com morte).
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