Na noite de 19 de fevereiro de 2019, a advogada caxiense Cíntia Miele Garnier e o médico Luis Paulo Nora voltavam para casa de carro quando passaram sobre uma cratera na RS-122, em Farroupilha. Camuflado na escuridão, o buraco rasgou dois pneus do veículo e o casal escapou por pouco de um acidente. Um ano depois, Cíntia e o marido receberam a informação da Justiça de que o Estado deve ressarci-los em R$ 3.122,70 pelos danos sofridos.
A sentença do Juizado Especial da Fazenda Pública tenta reparar uma omissão. O problema é que a advertência, mais uma entre tantas, não vem sendo assimilada pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer). A cratera alvo da ação judicial foi tapada pela prefeitura de Farroupilha em maio do ano passado, última vez que a estrada recebeu esse tipo de manutenção. Agora, o trecho onde o casal sofreu o prejuízo, altura do Km 61, nas proximidades da empresa Soprano, já dá sinais de forte desgaste. Não é condição isolada. Ao longo da RS-122, entre Caxias do Sul e Farroupilha, asfaltos ondulados, craquelados e esburacados, acompanhados de muito mato em acostamento, placas escondidas pela vegetação ou deterioradas são cada vez mais comuns. O cenário não muda em outros trechos da mesma rodovia, caso da ligação Antônio Prado-Campestre da Serra e de estradas como RS-453, RS-446 e RS-437, entre outras. Da mesma forma, quem trafega pela BR-116 enfrenta situações complicadas ao longo de 100 quilômetros, entre Caxias do Sul e Campestre da Serra pela inexistência de roçada, que transformou canteiros e acostamentos em matagais. A estrada é de responsabilidade federal.
Cíntia recorreu à Justiça para recompor os gastos sofridos pelo conserto do carro, é claro, mas também vê o resultado da ação como uma forma de fazer o Estado assumir questões básicas. Ela não está só nesse coro. Outras pessoas têm recorrido nos últimos anos em processos individuais para pedir reparações financeiras por pneus furados, rodas quebradas ou acidentes causados pela falta de conservação das rodovias. A luta é quase inglória. O Estado acaba pagando as indenizações ou postergando esses pagamentos via recursos e, ao mesmo tempo, se isenta de promover melhorias.
O desânimo é visível. Se houve um tempo em que entidades empresariais e lideranças pressionavam por investimentos de porte na infraestrutura viária, agora a luta imediata é para que o Daer garanta ao menos a manutenção básica das estradas da região.
Caxias do Sul, segunda maior economia do Estado, é refém do precaríssimo caminho de quase 10 quilômetros da RS-122, entre o viaduto torto, no Desvio Rizzo, e a alça de acesso para Flores da Cunha, no Santa Fé. É por ali que centenas de caminhões passam escoando a produção da cidade e região.
No Km 70 da RS-122, logo após o viaduto torto, no sentido Farroupilha-Caxias do Sul, duas crateras se mantêm firmes há vários meses. Difícil é compreender porque os buracos no declive nunca foram tapados. Semana passada, pedaços de tijolos preenchiam superficialmente a falha. O gerente do Posto de Combustíveis Squizatto, Antônio Rabe, acredita que o improviso foi obra de caminhoneiros preocupados com acidentes. Ele apontou outro trecho crítico no sentido oposto.
— Numa noite de chuva (há cerca de 15 dias), uns 40 carros tiveram pneus furados em outro buraco ali para cima. O pessoal foi parando aqui no posto e os frentistas acabaram ajudando — descreve o gerente.
No início de fevereiro, a vereadora Tatiane Frizzo (Solidariedade) já havia exigido atenção sobre as condições das rodovias ao diretor-geral do Daer, Luciano Faustino. A parlamentar, acompanhada do deputado estadual Neri, o Carteiro, apresentou, por meio de fotos, os problemas no trecho urbano da Rota do Sol, abrangendo o Km 70 da RS-122, no Desvio Rizzo, e o KM 142 da RS-453, no Santa Fé. Faustino prometera que a roçada e a manutenção da rodovia começaria em semanas, mas não informou uma data.
A incapacidade de manter as rodovias estaduais vem sendo debatida nos últimos 15 anos pelo menos. A diferença é que agora simplesmente não há equipes percorrendo as estradas para reparar o asfalto, refazer a sinalização ou a roçada.
— Quando é comprovado acidentes pelas condições da estrada, isso é responsabilidade do Estado. Ele tem o dever de ter estradas conservadas. Quando não tem, se omite e responde por essa omissão — enfatiza Cíntia.
A advogada, contudo, precisou reunir provas para evidenciar o quanto o Daer teve culpa no caso dela e do marido. O casal juntou reportagens, fez fotos dos buracos e dos pneus danificados. Ainda assim, a autarquia contestou as informações alegando que a rodovia estava em boas condições, contrariando o que a comunidade enxergava.
— Demonstramos para a Justiça que não, que a situação vem de tempo. Mas não pedimos indenização e sim o valor do prejuízo causado _ esclarece a advogada.
"O inverno está chegando e a situação vai piorar"
Não há uma estrada que se destaque pela qualidade. Fosse elencar, a RS-453, entre Caxias do Sul e o Litoral Norte, certamente seria um exemplo. Mas não é bem assim. Os buracos até são poucos em boa parte do caminho se comparados à RS-122, muito em parte pela recuperação do pavimento concluída entre 2017 e 2018. O detalhe é que a atenção parou por aí. O trecho anterior à subida ou descida da Serra, em Aratinga, até a região do acesso à localidade de Josafaz, tem sinalização horizontal precária e pavimentação irregular.
O trecho entre Tainhas e Lajeado Grande é o que se encontra em melhores condições, sem buracos, com boa pavimentação e sinalização horizontal (marcações na pista) reforçadas. Mesmo assim, há o trecho de cinco quilômetros que antecedem o trevo de Tainhas, com pavimentação muito irregular e buracos. A extensão não foi contemplada pelas reformas e segue nesta condição há mais de 10 anos. Para quem viaja à noite, há trechos na Rota de escuridão completa, em que o condutor não consegue visualizar a marcação na pista, caso da área onde uma colisão entre um ônibus e um carro matou duas pessoas e deixou vários feridos entre Vila Seca e Fazenda Souza.
Os caminhoneiros são os mais descontentes, revolta que cresceu com o anúncio de que os pedágios vão aumentar em 51,8% para a categoria.
— Iam resolver o problema da Rota do Sol e não resolveram. Vem com aumento de pedágio. As pedras estão lá (quede de barreira em maio, em Itati) há mais de seis meses e aí? O governo não está preocupado em tapar buraco ou fazer roçada. Para os caminhoneiros, a estrada esburacada complica a questão do freio, da suspensão, gasta mais combustível para reduzir a velocidade, é pior dirigir num asfalto com buraco do que numa estrada de chão — reclama Selezio Panisson, presidente do Sindicato dos Caminhoneiros Autônomos de Caxias do Sul, que abrange 20 municípios.
Entidades pressionam
A Câmara de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Caxias do Sul garante que tem exigido soluções do governo estadual a cada 15 dias, seja por meio de telefonemas ou correspondências.
— Alegam que falta recursos. Isso causa indignação, pois dependemos das rodovias para escoar a produção. O que está faltando é um contrato para a manutenção dessas estradas. Não entendo como não existe manutenção preventiva. Falamos recentemente com o governador e foi tocado no assunto das PPPs (parcerias público-privadas) a partir das concessões (de estradas). Só que isso é algo para o futuro. Precisamos é de manutenção preventiva até porque o inverno está chegando e a situação vai piorar. Uma vez havia a manutenção, hoje tem buraco aberto há mais de ano — lamenta Ivanir Gasparin, presidente da CIC.
A Associação das Entidades Representativas da Classe Empresarial da Serra Gaúcha (CICS Serra) tem reunião nesta semana com o secretário extraordinário de parcerias do Governo do Estado, Bruno Vanazzi. Edson Morello, presidente da CICS Serra, abordará a questão do aumento dos pedágios, mas também exporá a precariedade de estradas como RS-122, RS-453 e RS-446.
— Estamos preocupados com estas situações, tá ficando cada dia mais difícil. E essa mudança nos valores dos pedágios nos veículos de carga vai para a conta de todos. Tudo que for transportado será onerado. Sem contar com as condições destas rodovias que ceifam vidas, isso não tem preço, e as promessas políticas vão e vêm — alerta Morello.
Cenário pessimista
Pode até haver pressão para a manutenção da malha rodoviária de Caxias e região, mas o cenário não é nada promissor. Frank Woodhead, diretor secretário adjunto da Federação das Empresas de Logística e Transporte de Cargas no Estado do Rio Grande do Sul (Fetransul), não enxerga como o Daer pode retomar investimentos ou garantir a recuperação das rodovias com o Estado sem recursos. Woodhead é conselheiro da autarquia e coloca sobre a mesa o cobertor curto. Segundo ele, o Daer investe R$ 350 milhões por ano em obras e manutenção, o que é insuficiente.
— Faz um pouco de tudo e acaba não fazendo nada. O Nordeste do Estado até que é bem contemplado, mas se parou a manutenção, é problema sério. Entendemos que antes de construir, fazer novas estradas, é preciso manter o que se tem. Não adianta fazer nova estrada e deixar em ruínas depois.
O empresário diz que o departamento precisaria ter à disposição R$ 1 bilhão por ano para colocar em dia as demandas — considerando que esse valor precisa ser mantido por três ou quatro anos. Para ele, a agonia viária no Rio Grande do Sul vem ocorrendo desde os anos 1990. Na opinião de Woodhead, as novas concessões de estradas só serão válidas se forem atreladas a duplicações. Tapa-buracos, como ocorria no passado, é dever do Daer.
— Contratos (para manutenção) até tem, mas são tão antigos que precisam ser cancelados e relicitados. A falta de previsibilidade de recursos é tanta que faz com que as obras sejam intermináveis e custem uma fortuna. Mobilizam empresas e desmobilizam empresas. Por um bom tempo, será essa assim — prevê Woodhead.
CONTRAPONTOS
O QUE DIZ O DAER
Em resposta à reportagem sobre a atual condição das estradas da Serra, o Daer informou que retomará a manutenção das estradas da Serra em breve. Sem fornecer detalhes, a autarquia diz que houve a liberação de recursos na semana passada. Neste momento, estão sendo programadas as ações que ocorrerão na região da 2ª Superintendência Regional de Bento Gonçalves. A expectativa é de que os serviços iniciem pela RS-453, entre Farroupilha e Caxias do Sul.
O QUE DIZ O DNIT
Em resposta à reportagem sobre a condição da BR-116 em Caxias do Sul, o chefe da unidade local do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Daniel Bencke, informa que a roçada no trecho deve começar neste mês. O contrato com a empresa Pavia, que fará o serviço, foi assinado no dia 21 de janeiro e geralmente leva dois meses para iniciar a mobilização, o que inclui o estabelecimento de uma base e contratação de funcionários. A empreitada abrange 100 quilômetros de estrada, entre Caxias e Campestre da Serra. Conforme Bencke, a prioridade será o perímetro urbano de Caxias.