Na tarde do último 2 de agosto, a notícia de que mais de 200 mil bolsas de pesquisa seriam cortadas no ano que vem no Brasil começou a se multiplicar pelos meios de comunicação. As manchetes eram resultado de uma nota divulgada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), principal agência de fomento à pesquisa do País, ligada ao Ministério da Educação (MEC).
O documento que veio a público era direcionado ao governo federal e buscava evitar um corte de R$ 500 milhões para o orçamento da entidade, previsto na primeira versão da Lei Orçamentária Anual (Loa) de 2019.
No dia seguinte, o Ministério da Educação garantiu que o pagamento das bolsas não seria suspenso, mas a reação em cadeia já estava iniciada: o presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão de fomento ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, também denunciou em carta aberta um corte previsto de R$ 400 milhões para o ano que vem, quase um terço do orçamento atual.
Em seguida, entidades representativas das instituições de ensino superior do Brasil escreveram cartas semelhantes a seus representantes políticos e o setor da ciência e tecnologia ocupou, por alguns momentos, o centro do debate público. É provável que, em Caxias, ninguém tenha acompanhado a movimentação com mais atenção que os 219 estudantes que vivem com bolsas da Capes na cidade.
São alunos de cursos de mestrado e doutorado da Universidade de Caxias do Sul (UCS) que têm as mensalidades custeadas pela entidade de fomento e, nos casos em que dedicam exclusivamente à pesquisa, recebem de R$ 1,5 mil a R$ 2,2 mil por mês para se manter. Caso os cortes no orçamento da Capes se confirmassem, o dinheiro para pagar essas bolsas terminaria em agosto de 2019, juntamente com outros 93 mil auxílios e 105 mil bolsas de programas destinados à formação de professores.
A UCS ainda têm outros 50 bolsistas na pós-graduação recebendo auxílio do CNPq, da Fundação de Amparo à pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs) ou da própria universidade. Entre alunos da graduação e Ensino Médio, são mais 261 beneficiados com as chamadas bolsas de iniciação científica ou tecnológica, um auxílio quase simbólico de R$ 400 mensais pela participação em projetos de pesquisa.
Considerando professores que integram grupos de pesquisa na UCS e na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), instituições que também acessam as agências de fomento por meio de editais, é possível dizer que cerca de 500 estudantes recebem algum tipo de auxílio para atuar na área acadêmica, e mais de 200 professores mantêm projetos científicos na cidade.
São profissionais com alta qualificação que poderiam ter ganhos financeiros maiores em outras áreas, mas optaram pela área acadêmica e veem constantemente sua escolha ameaçada pelas movimentações do orçamento federal. Em 2017, por exemplo, o CNPq já havia previsto a suspensão de bolsas para a pós-graduação por falta de recursos.
Mas no que, exatamente, atuam todos esses bolsistas? Para o pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Juliano Gimenez, a própria falta de conhecimento sobre o que acontece atrás dos portões da universidade é um dos fatores que faz com que o setor seja sempre vulnerável a cortes em momentos de crise.
— A sociedade infelizmente não conhece o que é isso, o que é em parte culpa nossa também. Mas não há dúvidas que os principais países do mundo, com os maiores índices de desenvolvimento, se atrelam a uma condição de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação de uma maneira muito mais significativa — pondera.
Para especialistas, falta planejamento a longo prazo
Conforme Gimenez, a situação delicada do setor é reflexo também da falta de investimentos desde o ensino básico.
— Nós vivemos um momento na educação brasileira que é muito triste. Cada vez mais, menos alunos ingressam no Ensino Médio. E entre os que ingressam, cada vez menos concluem. Isso é um problema de soberania nacional absurdo e significativo. E afeta o Ensino Superior, obviamente. Vamos perceber esse prejuízo em 10, 20, 30 anos, se não houver uma reversão a curtíssimo prazo em termos de investimento e fortalecimento da educação básica.
O anúncio da manutenção do orçamento da Capes para o próximo ano é visto como um alívio, mas nada a se comemorar.
— Em qualquer país desenvolvido a gente percebe que há uma estabilidade no crescimento do incentivo à pesquisa. Aqui, se nós tivemos um crescimento, foi em certos espaços temporais. Depois estabiliza, com esse tipo de ameaça (de corte). Então, quais são os indicativos para o ano que vem: nenhuma evolução, o que a gente entende ser um desincentivo ao progresso — lamenta.
De fato, o investimento em pesquisa e desenvolvimento fica permanece, há anos, em pouco mais de 1% do PIB, conforme dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A flutuação histórica no número de bolsas disponíveis revela que o setor é um dos primeiros a receber cortes em momentos de crise econômica.
Apesar de sentir a movimentação sazonal, na UCS o número de bolsas disponíveis aos alunos se manteve estável nos últimos anos. Isso ocorre, segundo o pró-reitor, porque a instituição abriu mais seis cursos de mestrado e doutorado desde 2015, o que capacita a instituição a acessar mais bolsas.
O mesmo acontece no IFRS, segundo o pró-reitor de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação da instituição. Nos últimos anos, ele relata que o número de bolsistas aumentou em decorrência da expansão da instituição, mas o impacto da escassez de verbas é perceptível.
— Vivemos um momento muito difícil em termos de investimentos em pesquisa e inovação. Embora os investimentos nessa área tenham ligação direta com o desenvolvimento do país e com a qualidade da educação, vemos que essa relação não é estabelecida no Brasil e essas áreas sempre ficam prejudicadas com os cortes e restrições orçamentárias. Infelizmente, a realidade para a comunidade científica e tecnológica é muito dura — lamenta.
Já a professora do curso de Ciência e Tecnologia de Alimentos da UERGS em Caxias, Adriana Dantas acredita que é necessário que as instituições apostem em projetos conjuntos para acessar os recursos de agências de fomento.
— A gente tem que pensar de forma a juntar esforços. Fazendo parcerias, é isso que essas entidades querem, mais de uma instituição envolvida e multidisciplinaridade (nos projetos). É assim que funciona em outros estados.
O BRASIL INVESTE POUCO EM INOVAÇÃO?
:: A percepção de que o Brasil investe pouco em pesquisa e desenvolvimento é unânime entre quem faz parte da área.
:: De fato, os gastos do governo na área ficaram em cerca de pouco mais de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) na última década, conforme a Unesco.
:: É mais do que a média de toda a América Latina e do que investem os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) fora a China, por exemplo.
:: No entanto, pesquisadores costumam usar como comparação nações que se destacam no cenário internacional. A própria China, por exemplo, partiu de um patamar de investimentos no setor inferior ao do Brasil e hoje já gasta mais de 2% do PIB com o setor.
:: O índice é semelhante à média da União Europeia. Já a Coréia do Sul, exemplo frequente de investimento no longo prazo e de desenvolvimento por meio de investimentos na educação, chegou a dedicar 4,2 % do PIB à pesquisa e inovação em 2015.
:: O investimento específico em bolsas e projetos de pesquisa vinha crescendo durante todo o início dos anos 2000 no Brasil, mas começou a recuar a partir de 2015.
:: Em 2016, a política de cortes foi aprofundada pela Lei do Teto de Gastos que estabelece limite gastos públicos até 2036 para, conforme o governo federal, balancear as contas públicas e auxiliar na recuperação da economia.
:: A crítica dos pesquisadores se baseia no fato de que, longe de ser prioritária, a área está sempre entre as primeiras a serem sujeitas a cortes.
:: Caso a redução de um terço do orçamento do CNPq seja concretizado, por exemplo, a entidade terá cerca de R$ 800 milhões para custeio das atividades em 2019. Como comparação, o aumento salarial de 16,38% para para o judiciário aprovado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tem impacto previsto de R$ 717 milhões nas contas públicas, considerando apenas servidores da Justiça Federal.