Todos os anos, no dia 26 de maio, a população da pequena localidade de Caravaggio, em Farroupilha, salta de pouco mais de 100 famílias para mais de 100 mil pessoas. Os visitantes, vindos do próprio município e das cidades vizinhas, prestam homenagem à santa que dá nome ao local e, em menos de 24 horas, voltam a deixar o santuário, que retoma a tranquilidade normal.
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Para qualquer comunidade, uma movimentação nessa escala e velocidade causaria transtornos, mas a população local parece lidar bem com as romarias ao santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, padroeira da Diocese de Caxias do Sul. Pudera: a peregrinação acontece desde 1879, sendo quase tão antiga quanto a chegada dos primeiros imigrantes italianos à região.
É natural que os moradores de Caravaggio não imaginem a vida sem a romaria e tudo que a cerca. Para muitos, envolver-se nos preparativos se tornou tão natural quanto ajudar em um evento familiar.
Confira, a seguir, como é a rotina das pessoas que vivem santuário religioso mais popular da Serra:
Há cinco décadas alimentando os romeiros
Para quem mora em Farroupilha, Caxias ou Bento Gonçalves, a tradição de ir a Caravaggio ultrapassa a caminhada e a missa. A experiência também engloba, muitas vezes, a degustação da culinária local. Entre as opções para recuperar as energias do trajeto a pé ao santuário, uma das mais tradicionais é o Restaurante Família Brunetta, que oferece o típico almoço colonial aos romeiros desde 1959.
— Eu ajudo aqui dentro há 54 anos — revela o proprietário do local, Vasco Brunetta, 61.
Seu Vasco, que vive a cerca de 100 metros do santuário, se acostumou com toda a movimentação ainda pequeno.
— Há anos, quando tinha missas 24 horas, dava alguma confusão. Sobravam de madrugada os que bebiam um pouco mais. Agora é tudo tranquilo — aponta.
Ele nasceu em Santa Catarina, mas com dois anos de idade voltou para a localidade de origem da família paterna, quando a família comprou o restaurante.
— Meu pai inclusive ajudou a construir o santuário — orgulha-se.
De dentro do restaurante, observou todas as romarias e aperfeiçoou o atendimento ao público, que vem em maior número sempre no dia 26 de maio. Hoje, filhos, noras e primos ajudam no atendimento. Mesmo com toda a experiência, porém, a demanda ainda surpreende:
— Esse ano vai ser especial — projeta, enquanto se desloca de um canto a outro do local para servir os clientes.
A preparação para a 139ª romaria ainda teve uma dificuldade extra: a greve dos caminhoneiros, que bloqueia estradas da região. Vasco pensou que não conseguiria os suprimentos para o restaurante, mas, nos últimos momentos, deu um jeito de ir buscar os produtos.
— O almoço está garantido, podem ficar tranquilos — avisa.
Entre um queijo frito e uma polenta na chapa, Vasco ainda deixa um tempo para ir a missa:
— Não sou daqueles católicos excepcionais, mas procuro assistir a missa no domingo. No dia da festa também vou, mas no último horário — garante.
"Temos que receber bem os nossos romeiros", diz voluntário
Para a população de Caravaggio e das comunidades rurais que cercam o santuário, participar das atividades da igreja é natural, dado a proximidade da paróquia com a vida cotidiana. Por isso, basta um chamado do pároco para que todos se ofereçam como voluntários para atender os visitantes.
— Temos que receber todo mundo bem. São nossos romeiros — define o agricultor José Somacal Neto, 65.
José vive em uma propriedade rural a cerca de três quilômetros do santuário, onde cultiva uvas. Há pelo menos 40 anos trabalha como voluntário durante a romaria — sempre ajudando a assar os salsichões com pão na lancheria da paróquia. Durante todo esse período, a única mudança que percebeu na procissão foi o fortalecimento da tradição.
— A cada ano, sempre vem mais gente.
Em quatro décadas, ele garante, só não pôde trabalhar uma única vez.
— Teve uma vez, há 30 anos, que eu me acidentei e não pude vir. Depois me levaram na festa, mas eu estava acidentado. Foi o único ano — lembra.
Mas não são só os mais antigos que mantêm a tradição em Caravaggio. Enquanto José cuidava do churrasco, a radiologista Patrícia Pandolfi, 23, ajudava servir cachorros-quentes neste sábado da 139º Romaria ao santuário.
Ela vive no interior de Flores da Cunha, mas calcula que bastam cerca de 20 minutos para chegar à igreja. A família da mãe tem origem no povoado, o que aumenta sua proximidade com o local.
— Eu venho por causa da família, e para agradecer. Eu gosto, não é difícil e ajuda o santuário — justifica.
De geração em geração
— Eu nasci aqui no Caravaggio. Nessa casa velha de pedra — decreta o aposentado Geraldo Vieceli, 75, apontando uma bela construção no final da Estrada dos Romeiros que, segundo ele, é a mais antiga do povoado.
Desde criança, Geraldo se lembra dos romeiros passando em frente à construção de 1876.
— Naquela época, era só uma estradinha de chão. E o costume era esse: tinha missa durante toda a noite. Vinham pessoas toda a madrugada, rezando — relata.
O aposentado sempre foi próximo da igreja por influência do pai, e acabou como cantor no coral do santuário. Eventualmente, construiu a casa onde vive hoje, também na Estrada dos Romeiros, e criou quatro filhos no local, que voltam à residência paterna no dia de Nossa Senhora de Caravaggio para observar a romaria de perto, enquanto assam um churrasco.
— É tranquilo, tudo organizado pela comissão da festa, sem confusão. Só têm anos que é mais difícil para o pessoal (os romeiros), com chuva — avalia.
Conforme Geraldo, não é só o dia 26 de maio que movimenta a comunidade.
— Sempre tem gente que vem. Nos fins de semana, acho que sete ou oito mil pessoas. É bem concorrido, acho que é um dos santuários mais visitados do Brasil — observa.
Como Geraldo mora a menos de uma quadra do santuário, para ele nunca fez sentido pagar uma promessa indo a pé até a igreja. Para demonstrar sua devoção, ele teve de encontrar alternativas:
— Tem uma Gruta de Nossa Senhora de Lourdes lá para São Marcos de Farroupilha. Quando precisava caminhar, ia para lá. Hoje em dia a idade não ajuda mais — brinca.
Seu Geraldo gosta da conversa. Enquanto relembra causos, sua neta Maria, oito anos, não desgruda do avô. Tímida, a menina dá sinais de que continuará a tradição:
— Eu moro em apartamento, em Farroupilha. Mas acho legal, todo mundo vem caminhando para rezar.
Empreendedorismo tem seu lugar em Caravaggio
Como comunidade do interior, muita gente em Caravaggio vive da criação de animais e da produção de hortifrutigranjeiros. O santuário, porém, abre caminho para o empreendedorismo. É por causa do movimento constante — e confiável — de visitantes que a moradora Dionéia Rita Pedrolo consegue manter a malharia fundada pela mãe.
Esse movimento para nós é normal. Eu tenho 32 anos, sempre foi igual. Virou a vida da comunidade — explica.
A Malharia Caravaggio opera com confecção e loja em plena Estrada dos Romeiros. Em períodos de procissão, o restante da família é convocado para atender em mutirão o público extra.
— Durante a semana é bem calmo, mas nos fins de semana vende bem. Mas nada se compara a romaria — conta.
Provocada a citar pontos negativos na "invasão" periódica à comunidade, Dionéia se sai bem:
— A gente está tão acostumado que nessa época já virou uma coisa natural. A gente fica feliz de ver que é um lugar abençoado. E já acostumou a não sair nesses dias — brinca.
Confira as imagens da 139ª Romaria de Caravaggio:
Fotos: Lucas Amorelli/Agência RBS