O próximo ano promete ser difícil para quem trabalha nas casas de acolhimento de Caxias. A partir de 31 de dezembro, a entidade Celeiro de Cristo deixará de ofertar 50 vagas para pessoas em situação de rua. Com isso, as casas de passagem Carlos Miguel dos Santos e São Francisco de Assis, que já enfrentam lotação, precisarão absorver a demanda por leitos.
Embora a Fundação de Assistência Social (FAS) execute um planejamento para garantir o acolhimento de cerca de 20 usuários da Celeiro de Cristo, funcionários de entidades da área do município projetam complicações.
Leia mais
Casa de Apoio Celeiro de Cristo, em Caxias, encerrará as atividades no fim do ano
"É um baque os usuários não gostarem mais da Carlos Miguel", diz presidente da FAS de Caxias
A concentração da oferta de serviços assistenciais coincide também com um momento de insatisfação de servidores que atuam na Casa de Passagem Carlos Miguel, única 100% pública, mas que deve ser administrada por uma entidade parceira a partir do próximo ano, conforme já anunciado pela prefeitura.
Nesta semana, uma servidora da Carlos Miguel — representando seis dos 11 funcionários — ingressou com ação no Ministério Público alegando falta de condições de trabalho e irregularidades na gestão da FAS. Além disso, o grupo denuncia uma suposta pressão no trabalho, com frequentes situações de "assédio moral" cometidos pela FAS.
— Percebi desde o início desse novo governo um proposital desleixo no suporte à casa, com um visível interesse em precarizar os serviços e com isso tentar justificar a terceirização que eles (a FAS) querem promover — afirma a assistente social Vanda Ferreira Vittorazzi.
As denúncias, que foram protocoladas em conjunto com os vereadores Rafael Bueno (PDT) e Renato Oliveira (PCdoB), são rechaçadas pela FAS. Para a presidente da instituição, Rosana Menegotto, o movimento dos funcionários é resultado do descontentamento causado pelo anúncio da mudança de gestão.
Por outro lado, conforme Rosana, a pressão psicológica alegada pelos funcionários é uma situação comum vivida por trabalhadores que atuam com casos de alta complexidade. Ela argumenta que isso seria um dos fatores para estabelecer a nova forma de funcionamento da casa. Há ainda outra razão para a medida: desde o início do ano, diversos outros acionamentos teriam sido encaminhados à FAS e também ao Alô Caxias apontando supostos problemas de atendimento na Carlos Miguel.
— Tivemos várias denúncias contra condutas de servidores dentro da casa. A maior parte é superficial e anônima, o que, portanto, não fornece subsídios para averiguarmos. Mas a maioria delas reclama do tratamento que os funcionários, às vezes, dão aos usuários — comenta Aline de Souza Nora, assessora de gestão da FAS.
Servidores alegam perseguição e falta de condições
Com 20 anos de existência — completados em junho— a Casa de Passagem Carlos Miguel, antes Albergue Municipal, presta serviço de acolhimento para 50 pessoas (41 homens e nove mulheres) em uma residência de três pisos no bairro Fátima. Funcionários que trabalham no local há vários anos manifestam orgulho em pertencer à entidade, que consideram referência na área. Porém, embora reconheçam que problemas não sejam novidade, conforme relatos de seis dos 11 funcionários que atuam diretamente no atendimento assistencial, a situação deste ano seria insustentável.
— Abriram área de doentes. Estou lá há 13 anos, a Carlos Miguel não é para isso. Fizeram dois banheiros, que foi uma melhoria significativa porque só havia um. Porém, colocaram a área de doentes no andar inferior, junto ao refeitório, em um local totalmente inadequado. Temos mulheres grávidas, pessoas com transtorno mental, com tuberculose. Não temos condições de lavar a louça separadamente desse público ou tomar os cuidados necessários. Aconselham a usar a máscara, mas e o resto? — questiona um dos servidores que preferiu não se identificar.
Segundo ele, as dificuldades aumentaram gradualmente ao longo dos anos e pioraram consideravelmente em 2017. O relato é corroborado por outra servidora. Ela conta que houve momentos em que faltaram materiais mais básicos de higiene na casa, como sabonetes e creme dental. Ela culpa a nova direção da casa, nomeada em abril.
— Uma vez a gente recebia esses sabonetes de hotel pequenos, entregava para cada um (usuário) e deu. Na falta desses, foram comprados sabonetes normais e a gente cortava em quatro pedaços. Depois acharam que era demais e começaram a picotar mais. Chegou um ponto em que, num fim de semana, uma pessoa juntou todos os pedacinhos de sabonete que encontrou pela casa perdidos, pelo tanque, banheiros, botou num pote e esquentou. Deixamos aquilo endurecer e uns dois dias depois cortamos aquilo para dar pra eles. Não faz muito tempo isso, foi há uns 15, 20 dias que aconteceu — lembra.
— Antes, o problema era mais burocrático e não tanto o descaso. Hoje, eles dizem simplesmente que não tem nada, a direção da casa é muito omissa. A ideia é fazer que a pessoa evolua daquele estado crítico de quando ela procura o nosso serviço. Às vezes, a pessoa trabalha em uma reciclagem o dia inteiro, busca nosso suporte e não conseguimos fornecer o básico para tentar resgatar a cidadania daquela pessoa — complementa outro servidor.
A servidora Vanda Ferreira Vittorazzi, que atuou na Carlos Miguel durante cerca de 15 anos e se aposentou em agosto, diz que as dificuldades desgastam os funcionários.
— Apesar das dificuldades, nós tínhamos prazer de ir trabalhar. Hoje, está todo mundo em processo de adoecimento. Ver nossos usuários na rua sujos é muito triste. É um desmonte, um retrocesso. É um caos, servidores estão sendo perseguidos e funcionários exemplares boicotados — comenta.
Outra crítica compartilhada entre servidores se refere ao fechamento do Caxias Acolhe. Ainda que afirmem concordar com a ineficiência do serviço, os funcionários da Carlos Miguel questionam a forma como a atividade foi encerrada. Segundo eles, houve falha na reorganização das demais entidades para comportar a demanda.
— O Acolhe poderia ter sido reformulado se tivesse uma equipe técnica e uma melhor localização. Mas o fechamento também seria aceitável se tivessem qualificado as demais casas, e não foi o que aconteceu — acrescenta Vanda.
A assistente social contesta a eficiência do programa SuperAção, lançado nesse ano pela FAS e que estabelece metas com os usuários das casas de passagem, visando a superação da condição de rua.
— O SuperAção é uma falácia. Não existe. Eu queria saber o que ele diferencia ou inovou em relação ao programa que tínhamos nas casas para a população de rua? Tínhamos uma rede e inclusive abordagem à população de rua até as 22h, coisa que não tem hoje. (O SuperAção) foi um comercial que apresentaram como uma das ações, mas que na verdade não existe — ressalta.
Para FAS, Casa São Francisco é referência
Conforme a presidente da FAS, Rosana Menegotto, hoje a Casa de Acolhida São Francisco de Assis, no bairro Cinquentenário, é a referência para o atendimento da população em situação de rua em Caxias.
— Esse dado vem de uma pesquisa feita com os próprios usuários. É a casa com o melhor atendimento e que tem a melhor metodologia para que eles superem essa situação — explica.
De acordo com Rosana, o município deixou por muitos anos de se preocupar com a recuperação dos usuários que buscavam a ajuda do poder público.
— A metodologia dentro da Carlos Miguel foi por muito tempo deixada de lado. Tanto que é difícil, em Caxias, se descolar do nome albergue. Se usa casa de passagem porque é um local temporário, para superar uma dificuldade. A Casa São Francisco faz exatamente essa tipificação.
O local, mantido em parceria _ na mesma modalidade prevista para a Carlos Miguel em 2018 _ com a Associação Mão Amiga tem 34 vagas e deve ter a estrutura ampliada.
A fórmula de sucesso, porém, é contestada por servidores da Carlos Miguel. Uma funcionária do local, que não quis se identificar, diz que a São Francisco pode oferecer um serviço mais qualificado porque recusa usuários.
— À noite, fazemos a regulação de vagas necessárias. Ou seja, se a gente está com a casa lotada e há demanda espontânea, ou de outras entidades, a gente entra em contato com as outras casas. Na Celeiro de Cristo, sempre deram um jeito de encaixar as pessoas. Na São Francisco, a gente sabe que tem vaga e eles não recebem — reclama.
A situação ocorreria porque a Casa São Francisco escolheria quem quer atender: os usuários, normalmente em recuperação da dependência química, tem que estar comprometidos com as regras do local.
— Quem está levando o tratamento a sério, trabalhando, para eles é o usuário ideal. Já aquele que incomoda, falta uma noite, ou não chega no horário, para eles já não dá. Eles decidiram isso, mas eu pergunto por que o albergue (Carlos Miguel) pode atender? O albergue é a "mãe de todos", na verdade. Tem alguns (usuários) que a gente deixa na "geladeira", mas depois volta a receber. É um serviço público — compara a servidora.
A direção da Casa São Francisco não quis se manifestar sobre assuntos externos ao trabalho da casa e negou que seleciona usuários, afirmando que quem faz a distribuição de vagas durante o dia é o Centro Pop Rua. Para situações à noite, a responsabilidade de distribuir os usuários é da própria Carlos Miguel.
Hoje, o município repassa anualmente R$ 837,6 mil à Casa São Francisco.
Vereadores pedem impugnação do edital para a Casa Carlos Miguel
:: Os vereadores Rafael Bueno (PDT) e Renato Oliveira (PCdoB) remeteram denúncia ao Ministério Público nesta semana pedindo a impugnação do edital de chamamento público que convoca empresas habilitadas a concorrerem ao Termo de Colaboração para administração da Casa de Passagem Carlos Miguel.
:: O ofício contesta os itens contidos no processo, desde as condições estruturais exigidas para atendimento até a suposta falta de profissionais (cuidadores e educadores) para atuarem no local. É solicitada também a anulação de um termo de referência elaborado pela diretora de Proteção Especial de Alta Complexidade, Eler Sandra Oliveira, pois ocargo dela, por lei, não existiria, o que invalidaria o documento.
:: Também nesta semana, Bueno protocolou pedido de informações na Câmara solicitando esclarecimentos sobre as principais reclamações de servidores quanto as supostas irregularidades no funcionamento da Casa Carlos Miguel.
:: A promotora Adriana Chesani requisitou a análise técnica urgente do edital e termo questionados e a realização de uma inspeção para verificar a estrutura física da casa. O processo determinará se há elementos para instaurar um inquérito civil.
:: A FAS defende que o modelo de parceria para administração da casa vai possibilitar o aumento dos investimentos no local. Hoje, o município gasta R$ 667,9 mil com a Casa Carlos Miguel, fora o custo com funcionários, que serão realocados para a proteção básica. O custo da parceria será de R$ 1,4 milhão por ano.
:: A presidente da FAS, Rosana Menegotto, garante que as denúncias levantadas pelos vereadores são "inverdades e não tem fundamentos".