No ano em que completa 20 anos da publicação do primeiro estudo feito no Brasil sobre sexualidade, inúmeras mudanças ocorreram na vida sexual dos brasileiros. A sexóloga Carmita Abdo, que este em Caxias do Sul nesta quarta-feira (21) para uma palestra, avalia o declínio na prática impulsionado por questões como o uso exacerbado das redes sociais, o vício na pornografia e o crescimento de depressão e ansiedade depois do período pandêmico da covid-19.
Carmita, que é médica psiquiatra, sexóloga e estudiosa da sexualidade humana, foi pioneira no início das pesquisas no país sobre comportamentos sexuais e as mudanças ao longo das gerações. Em 2004, quando publicou o primeiro livro sobre o tema, chamado Descobrimento sexual do Brasil: para curiosos e estudiosos, percebeu que a iniciação sexual da época começava por volta dos 14 anos. Em um período onde as redes sociais e a internet cresciam gradativamente, o comportamento observado era de homens que tinham dificuldade em ter ereções, preocupação em saber praticar o ato e pessoas que se cobravam de forma excessiva para corresponder às expectativas dos parceiros. Apesar do cenário da época, para Carmita, era uma geração que tinha uma vida sexual mais ativa e que encarava os riscos de sofrer rejeições.
Atualmente, desde aquele primeiro estudo, mudanças consideráveis foram percebidas na prática sexual dos brasileiros. Segundo a sexóloga, a geração atual demora mais tempo para iniciar a vida de sexo ativo e enfrenta uma série de questões antes de estar junto de alguém. Confira abaixo a entrevista:
O que mudou desde o primeiro estudo para a geração atual?
Percebemos que hoje em dia existe um público que acessa pornografia muito frequentemente, que acessa material erótico de todo o tipo e não tem restrição. Isso acaba fazendo com que os adolescentes, que antes começavam a se relacionar com 14 ou 15 anos, hoje iniciam a vida sexual no sexo virtual e depois têm muita dificuldade de passar desse formato para o formato presencial. Eles iniciam a vida sexual lá pelos 20, 22 anos. Não que isso seja melhor ou pior, mas mostra uma diferença bastante grande de gerações.
E o que essa iniciação virtual acarreta na vida desses adolescentes?
O que a gente percebe em atendimento é que a dificuldade para o prazer no relacionamento físico com o presencial é muito grande porque falta experiência. Isso é percebido também em pessoas que já são adultos jovens, que em outras gerações tinham mais bagagem, já tinham vivido os tropeços e os percalços da iniciação sexual. Hoje, essa iniciação presencial vai acontecer mais tarde, quando já se imaginava que esses jovens tivessem mais tranquilidade, mais bagagem. Às vezes, até evitam a prática presencial porque, ao começarem a perceber a sua falta de experiência, voltam para as telas e passam mais alguns anos ali sem sentir coragem para se lançar numa experiência presencial.
Pode-se dizer então que a geração atual faz menos sexo?
É interessante que diferentes pesquisas apontam que hoje os jovens do mundo todo fazem menos sexo, mas quando falamos sobre fazer menos sexo, estamos falando sobre o encontro sexual presencial, corpo a corpo, com cheiro, com toque. O sexo que fazia o uso de motéis, por exemplo, que persistiu até a época da pandemia, quando, pouco a pouco, foi sendo restrita a saída e houve a busca pelo sexo via internet. Por causa dessa mudança, hoje é muito mais frequente o sexo virtual do que jamais foi. E o sexo pela tela não tem cheiro, não tem toque. É o visual e, às vezes, o auditivo, mas fica faltando o restante. Embora a gente saiba que, hoje em dia, existem diversos recursos que simulem esse contato físico entre as pessoas, não é o mesmo que fazer sexo com alguém.
E o que contribui para que o sexo virtual seja mais atraente para essa geração?
O jovem faz o uso frequente da pornografia e vive em um mundo de fantasia, evita tudo o que pode ser traumático, negativo, desagradável, que é o que as telas proporcionam. Mas sabemos que o que é traumático, desagradável e negativo é necessário para que a pessoa desenvolva defesas para continuar a vida. Então, pela internet o jovem não vai aprender a usar o preservativo até que haja o contato físico. Aí quando ele vai para o ato sexual presencial, ele não tem essa prática e, além de tudo, não se excita tanto com a carícia que vem de alguém como com a sua própria. O cérebro explica como ele deve se autoestimular e ele não precisa falar com ninguém, tudo acontece dele para ele mesmo. Quando ele tenta estar com alguém e, além de tudo, alguém que não é tão exuberante fisicamente, nem tão experiente quanto o que ele vê num vídeo pornô, num filme erótico, realmente aquele estímulo acaba sendo muito precário perto do que ele precisa para sentir que está valendo a pena e que o sexo vai se desenvolver com satisfação.
Além dessa prática frequente do sexo virtual, desde o primeiro estudo até hoje, houve mudanças também na questão da saúde sexual dos brasileiros?
O que a gente vê é que as pessoas tiveram, numa época anterior, muito mais cuidado com a saúde. Foi quando paramos de fumar, quando exercícios físicos foram valorizados, quando a dieta mais balanceada foi trazida a conhecimento e foi adotada. Tudo isso trouxe um nível de saúde maior, aquela geração saúde da qual ouvimos falar alguns anos atrás e que vem se perdendo hoje em função de bombas de hormônios, de exercícios exagerados, de dietas extremas e que levam ao adoecimento. Acredito que a gente precisa retomar um pouco e reequilibrar a diferença entre estar se cuidando de fato e estar se tornando refém de uma série de procedimentos que absolutamente não revertem em saúde. São hormônios, exercícios exagerados, dietas descabidas e até mesmo os cigarros eletrônicos que levam à piora da atividade sexual, porque a atividade sexual precisa de um corpo saudável, como precisa também de uma mente saudável.
Quando se fala em uma mente saudável para a atividade sexual, como isso interfere na prática?
No pós-pandemia, tivemos um aumento de 28% na prevalência de depressão e ansiedade na população mundial, dois inimigos brutais da vida sexual saudável. Estar deprimido acaba com o desejo sexual, estar ansioso torna o desempenho muito pouco favorável, porque a pessoa não consegue se controlar durante o ato, não consegue tocar o passo a passo com tranquilidade até chegar no desenvolvimento do ato de forma satisfatória. Se atropela, perde a ereção, no caso dos rapazes ou até ejacula rapidamente. Se é uma moça, ela não consegue estar absorta naquela atividade, se distrai demais e acaba não aproveitando o ato em si.
E qual orientação pode ser dada para que haja a prática física com outras pessoas e que seja prazerosa?
Hoje em dia tem muitos profissionais prestando orientações na internet e muitos sites interessantes. Educação sexual pela internet é o benefício que a gente tem. E não vou demonizar e dizer que tudo é ruim. O jovem nunca teve também a oportunidade de se orientar tanto, de forma tão fácil. Ele pode buscar sites de qualidade, encontrar coisas para que ele vá mais instrumentalizado para essa iniciação. Então, cuidando quantas horas que se passam diante da tela e o que está sendo acessado. Horas infindáveis, recursos inúmeros, tudo isso pode ser muito divertido, mas resulta numa fantasia sobre o sexo que depois fica difícil de aceitar a realidade, que é menos divertida, que é menos diversificada, que é mais transpiração mesmo do que inspiração.