
Há cerca de uma semana, motoristas estão autorizados a circular pela Avenida Marcopolo, no acesso ao bairro Planalto, em Caxias do Sul. O tráfego foi liberado em uma via desnivelada, com valetas abertas pela água no material que deveria servir de base para o asfalto, que não foi aplicado. A medida foi adotada como uma forma de facilitar a vida de moradores do entorno, que desde janeiro convivem com um canteiro de obras com pouca evolução até a parada total com a chuva de maio.
O projeto do Planalto é o exemplo mais recente de um problema já crônico no Brasil, mas que se intensificou desde a pandemia, inclusive em Caxias. Licitações não atraem interessados e precisam ser repetidas com ajustes até que uma empresa se apresente. Em muitos casos, porém, a candidata que assina o contrato com o município não consegue concluir o trabalho. Foi assim, por exemplo, com o acesso ao Desvio Rizzo e, no ano passado, com a revitalização da Estação Férrea.
Os motivos que levam ao abandono das obras envolvem um complexo conjunto de fatores que passam por legislação, estrutura dos órgãos públicos, situação do mercado da construção civil e capacidade da iniciativa privada, entre outros. São questões que precisam estar alinhadas de forma que seja vantajoso aos envolvidos e sem descumprimento da lei. E ainda assim podem ocorrer situações inesperadas.
— A paralisação no Desvio Rizzo foi por uma decisão judicial de uma ação antiga que resultou no bloqueio das contas da empresa. Não teve relação com a licitação — revela o procurador-geral do município, Adriano Tacca.
O município rescindiu o contrato com a empresa, e a Codeca assumiu a maior parte do trabalho.
Tudo começa no projeto
A efetividade de uma obra pública depende de ações tomadas muito antes das máquinas começarem a trabalhar. Além de um projeto que resolva o problema a ser atacado e atenda aos parâmetros técnicos, o orçamento também precisa estar dentro da realidade do serviço público. Nesse ponto, a legislação federal é rígida, com pouco espaço para adaptações às diferentes realidades de mercado. A elaboração dos preços das obras precisa obedecer a tabela do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinapi). A relação tem variações por regiões do país, e é atualizada mensalmente, mas nem sempre se reflete em orçamentos adequados à realidade na hora da contratação.
— As empresas muitas vezes reclamam com a gente que os orçamentos não refletem o valor do mercado — revela Reinaldo Toscan Neto, titular da Diretoria de Projetos da Secretaria de Obras de Caxias.
Para a presidente do Sinduscon Caxias, sindicato que representa as empresas de construção civil, a atualização das tabelas não consegue acompanhar as mudança de mercado. O resultado é que, em determinados períodos, fica inviável para o setor firmar contratos com o poder público.
— Hoje temos muito problema na região por conta da enchente, assim como foi após a pandemia. Subiu muito o material e, quando não subiu o material, subiu a mão de obra. Essas tabelas não acompanham o mercado real — diz.
As empresas muitas vezes reclamam com a gente que os orçamentos não refletem o valor do mercado.
REINALDO TOSCAN NETO
Titular da Diretoria de Projetos da Secretaria de Obras
A mesma rigidez para a elaboração de orçamentos também limita os reajustes ao longo do contrato. As correções levam em conta a recomposição da inflação ou reequilíbrios por fatores extraordinários. Nesse último caso, porém, os reajustes não consideram as variações de preço dentro da média dos últimos anos, apenas o excedente relativo a esses percentuais.
— A empresa faz o custo mais espremido possível para ganhar a obra, aí surgem esses imprevistos e eles não conseguem ficar dentro do valor do contrato. Nós não podemos conceder reajustes além daquilo que a lei permite, que são os reequilíbrios ou reajustes decorrentes da inflação. Então, ficam os dois entes relativamente amarrados — resume o prefeito Adiló Didomenico.
As tabelas não acompanham o mercado real
MARIA INÊS MENEGOTTO DE CAMPOS
Presidente do Sinduscon
Garantias e inexperiência
Diante do descompasso orçamentário, empresas já consolidadas na área da construção civil direcionam as atenções para outros segmentos do mercado e as obras públicas têm ficado com empresas menos experientes. Essa falta de vivência com os trâmites públicos por vezes faz com que as construtoras não identifiquem fatores de risco.
— Tem erros dos dois lados. Alguns projetos já saem com problemas dos órgãos públicos, faltam projetos complementares e isso não está no orçamento. As empresas maiores saem. As empresas menores pegam e veem que não conseguem chegar no final. É um erro pegar, mas não é de má-fé — exemplifica Maria Inês, sem citar casos de erro de projeto em Caxias.
Para evitar empresas sem capacidade ou mesmo aventureiras, as licitações exigem uma série de comprovações por parte das candidatas, que incluem saúde financeira e qualificação técnica. As exigências, contudo, precisam ter um equilíbrio para não prejudicar a concorrência, em vez de estimulá-la.
— Em todas as licitações de pavimentação, a gente exige uma declaração de disponibilidade de usina de asfalto. O que se entende por essa declaração é que, se o cara não tem na empresa, ao menos ele já conversou com alguma que vai fornecer o material. É uma autodeclaração, não podemos ir tão a fundo em cada documento e na empresa ver se o cara tem a usina ou obrigar ele a nos levar em quem ele contratou para nos informar que já está contratado. A ideia é sempre confiar, não desconfiar — destaca Reinaldo.
"Luz no fim do túnel"
As obras paralisadas recentemente em Caxias foram contratadas pela Lei 8.666/93, que regrava as licitações do país até o fim do ano passado. Desde 1º de janeiro, as contratações públicas seguem a Lei 14.133/21, conhecida como nova lei de licitações.
O texto permite novas formas de contratação e a adoção de outras ferramentas para tentar garantir que as obras tenham início e fim. É o caso do seguro-garantia com cláusula de retomada, que passará a ser adotado pela prefeitura de Caxias para obras maiores. A lei antiga já previa o seguro garantia, mas a cláusula de retomada é uma novidade possível a partir de agora.
Com ela, a vencedora da licitação fica obrigada a contratar um seguro a ser pago pelo município. Em caso de entraves que paralisem a obra, a seguradora fica responsável por contratar uma nova empresa e finalizar a obra, sem necessidade de seguir o trâmite de contratação pública. A modalidade não foi utilizada no primeiro semestre deste ano porque não havia sido regulamentada.
— Estou chamando a confederação das seguradoras para conversar, porque de nada adianta prever em edital se as seguradoras não oferecerem o produto — revela Adriano Tacca, acrescentando que as primeiras sondagens do município apontaram que a modalidade já existe no mercado.
Tem luz no fim do túnel. Estamos muito próximos de contratar as construtoras de forma profissional e com mais efetividade.
ADRIANO TACCA
Procurador-geral do município
Outras ações envolvem conversas com construtoras para identificar as necessidades do mercado, treinamento de departamentos financeiros e busca de exemplos de outros órgãos públicos.
A avaliação entre as pessoas ouvidas pela reportagem é de que o ganho de experiência na utilização da nova lei vai levar ao aumento no uso das novas possibilidades de contratação. Até lá, porém, novas alterações na legislação vão ser necessárias, na avaliação da presidente do Sinduscon. Além disso, o setor público vai precisar de incremento estrutural, com treinamento de pessoal e ferramental para o desenvolvimento de projetos, como a plataforma BIN, a mais moderna atualmente.
— Ela vai ser obrigatória, mas muitas prefeituras não estão preparadas para trabalhar com ela. E não são somente os técnicos, são os computadores também — alerta Maria Inês, que também defende a divisão de projetos em lotes para facilitar as contratações.
Para Adriano Tacca, porém, a expectativa é de que as novas possibilidades levem a uma solução:
— Tem luz no fim do túnel. Estamos muito próximos de contratar as construtoras de forma profissional e com mais efetividade.