No carro da vendedora Eonara Velho, 37 anos, já não cabia mais nada: "Só sobrou espaço pra respirar", brinca ela, na saída de Caxias do Sul, nesta terça-feira (21), para levar os donativos às vítimas da enchente no Estado. Na carona, a confeiteira Flaviane Tratsch Ferreira, 38, viajou a São Sebastião do Caí com uma caixa de alimentos no colo.
No pequeno comboio, formado por uma van e dois automóveis, todos abarrotados de doações, 11 voluntários retratam a rotina de tantos outros que desde o dia 1º de maio descem a Serra para doar seu tempo limpando casas e distribuindo donativos.
O empresário Marcos Bagatini, 63, disponibilizou a van que anteriormente usava para levar turistas a viagens de pesca. O filho Vinicius, dentista, reagendou horários dos pacientes no consultório. E Eonara pediu férias:
— Era inadmissível, impossível eu ficar parada. Como é que eu vou deitar na cama sabendo que as pessoas estão precisando e eu posso ajudar? Não sei se bateu em mim como nos outros, mas pra mim foi quase loucura cogitar em não ajudar — conta.
Na cidade de quase 25 mil habitantes no Vale do Caí, a van carregada com roupas, brinquedos e fraldas estacionou na entrada do bairro Navegantes, o mais atingido pela enchente, depois de cruzar por uma cidade em reconstrução. Móveis e entulhos seguem nas calçadas à espera de recolhimento. Na Rua São João, distante 10 quadras do leito do Rio Caí, moradores que na semana passada deixaram as casas de barco cercaram a van em busca das doações. São vizinhos da Oderich, indústria de condimentos e enlatados que paralisou a produção e tem todo o estoque danificado nas calçadas.
Com a filha de quatro meses em uma mochila canguru, Nicole Schneider, 22, buscava fraldas e lenços umedecidos para a pequena Florence, de quatro meses, com o marido Gabriel da Silva, 39.
— Perdemos tudo o que estava no primeiro piso. Nosso estoque de fraldas molhou todo. Roupa de frio ajuda muito, porque está esfriando e temos que montar um novo guarda-roupa — diz.
Enquanto adultos provam casacos e procuram roupas que sirvam nos filhos, outros se aproximam e pedem se chegariam viandas. As ruas de São Sebastião do Caí têm recebido centenas de voluntários, mas principalmente aos finais de semana. Em dias úteis, o número se reduz e são os moradores, com ajuda dos vizinhos, que fazem o mutirão de limpeza das casas com produtos de limpeza, rodos e vassouras doados.
Mais em frente, na Rua Aquibadan, muito próxima ao leito do Rio Caí, a destruição é ainda mais nítida. O nível onde a água chegou é mais alto e a linha da sujeira que comprova a cheia está no limite dos telhados. Quando a van estaciona, homens buscam por enxadas, crianças por brinquedos e mães, como Pamela Kochhan, por um calçado para o filho autista de quatro anos:
— Consegui um leite em pó que era muito importante e um pouco específico que não tinha encontrado ainda. O tênis é para ele não ficar andando de chinelo como tem andado até agora. É o inferno passar por isso sendo mãe, é preciso se mostrar forte para que tudo isso não desencadeie uma crise nele — desabafa.
Perto do meio-dia, um carro com placas de Farroupilha, já conhecido na vizinhança, estaciona com o que já era aguardado pelos moradores do bairro Navegantes. São viandas trazidas por Carina Colet, 45, presidente da comunidade São Roque e que há 15 dias, com a ajuda dos vizinhos, cozinha e embarca as refeições com destino à cidade.
— Hoje é arroz, feijão, batatinha e frango desfiado. Nunca sobra. Trabalho de motorista no início da manhã e no final da tarde, nesse meio estamos aqui, alimentando quem precisa — diz.
No cenário de árvores arrancadas pela raiz e cobertas de poeira que um dia foi lama, soma-se a presença de cães que estão em todas as ruas. Quando fora dos veículos, voluntários descem com rações e alimentam os animais com a ração carregada nos centros de donativos de Caxias.
Os itens saem do ginásio do Seminário Nossa Senhora Aparecida, em Caxias do Sul, com destino certo. Com a experiência de visitar as áreas atingidas outras vezes, voluntários trocam contatos com quem precisa de ajuda e retornam com os itens solicitados por eles.
A mamadeira rosa, que saiu empacotada da Serra, chegou às mãos de Paula da Silva, 40, e sua filha Lara da Silva Braga, de quatro meses, no abrigo instalado no bairro Conceição, em outra parte da cidade que não foi atingida pela cheia do rio.
— Eu tinha uma, mas era muito pequena, ontem me deram um monte de roupa boa, foi só pedir que no outro dia me trouxeram — diz.
No salão da Comunidade Conceição, 40 famílias dividem o espaço que transformaram, divididos por lençóis, em casas. Fogões e geladeiras foram instalados nas residências improvisadas e as refeições são feitas ali, com todos os ingredientes, e inclusive o gás, doados pela comunidade e entregues por voluntários.