A dor que a medicina não cura, mas que atinge 70% das mulheres diagnosticadas com câncer, de acordo com a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), é o abandono que elas sofrem por seus companheiros durante ou logo após o término do tratamento contra a doença. O mês que serve para conscientizar sobre o câncer de mama, tipo que mais atinge as mulheres brasileiras, segundo o Ministério da Saúde, também abre o diálogo e espaço para as histórias por trás da estatística, sobre o desafio para além do hospital e dos efeitos colaterais.
A exemplo da cantora Preta Gil, que viveu uma separação enquanto tratava um câncer no intestino, são diversos os comentários de profissionais da saúde e de pessoas que já viveram a situação sobre o abandono neste momento. O Instituto de Câncer do Hospital Pompéia de Caxias do Sul e a Associação de Apoio a Pessoas com Câncer (Aapecan) do município externam a busca pelo amparo às pacientes que sofrem com algum tipo de abandono.
Especialistas afirmam que, quando a mulher tem uma rede de amparo e apoio, o tratamento acaba sendo menos difícil, principalmente pelo bem-estar emocional, o qual já fica comprometido com os efeitos colaterais do tratamento que afetam também a autoestima feminina. Dentro da estatística e querendo acolher outras pacientes, mulheres moradoras da Serra contam como foi enfrentar a luta contra o câncer e também o desafio para superar o abandono de quem mais amava, com muito amor próprio e vontade de viver.
"Não quero me preocupar com o que foi passado"
— Eu não quero me preocupar com o que foi passado, não quero me preocupar com quem me abandonou. Eu quero me preocupar com o novo. O que está chegando para mim? O que está vindo aí? É nisso que eu quero ter a esperança, sabe? Do que que está por vir!
É assim que Maria* enxerga a vida daqui para a frente. Casada há 12 anos, ela teve o apoio do marido até o fim do tratamento, quando começou a notar um afastamento do companheiro.
— Ele estava chegando tarde em casa, trabalhava direto, tinha folga na segunda-feira, mas fazia questão de trabalhar mesmo assim. Tinha alguma coisa errada. Depois descobri que a menina com quem ele me traiu trabalhava com ele. Aí foi difícil, sabe? Não tive baixa estima quando perdi a mama, os cabelos. Tive depois do abandono — conta Maria.
O sentimento de culpa tomou a mulher em um primeiro momento, mas ela destaca que nunca foi maior que a certeza que ela não merecia. Desempregada há quase três anos, hoje ela foca em conseguir recolocação no mercado de trabalho e está em contagem regressiva para a colocação da prótese mamária, que deve ocorrer até o final do ano.
— Pensei em mim mesmo, no amor próprio, que preciso me cuidar. Eu preciso de alguém que me mereça — garante.
Além do amor próprio, o convívio com outras mulheres que enfrentavam o câncer e o abandono também foi o que fortaleceu a caminhada. A mulher conta que, juntas, afastam a solidão e sabem que não estão sozinhas.
"É um livramento"
Quando o ex-marido de Ana* pediu a separação, dentro de um carro, após mais de dez anos de união, ela ouvia de todos ao seu redor que era um livramento.
— Doutora, quero chegar na fase de ver dessa forma — disse Ana, durante uma consulta, quando a médica lhe disse o mesmo.
Hoje, quase um ano depois, ela já enxerga assim. Ana está terminando o tratamento contra o câncer de mama, fez a reconstrução mamária nesta segunda-feira (23) e torce pelo fim do processo de divórcio o quanto antes. Ela conta que os sinais que enfrentaria isso sem a ajuda do então marido vieram logo após a primeira quimioterapia e a perda do cabelo.
— Ele começou a se afastar. No começo ele dizia que estava legal, levava na brincadeira, mas já sentia uma diferença. A fase mais complicada é quando você começa o processo do tratamento e os sintomas. Quando você perde o cabelo, o apetite, não consegue fazer comida e nem comer direito porque o cheiro te faz mal. Você se sente mal, não consegue fazer suas atividades, não consegue ser dona de casa e ter o mesmo ritmo de uma pessoa saudável. Ali ele começou a ficar mais seco, não era mais participativo mesmo estando em casa. Muitas vezes eu pedia para ele me ajudar e, às vezes, até me negava um pouco de ajuda — compartilha.
Próximo da cirurgia de retirada da mama, uma das orientações médicas que a fisioterapeuta recebeu é que fosse cuidada por quem queria cuidar dela. Com isso, Ana passou mais de 20 dias na casa da mãe, uma das pessoas que a acompanhou também durante as sessões de quimioterapia, além do irmão mais novo. Quando ela retornou para casa, teve a certeza que o casamento tinha terminado.
— Ela (médica) falou assim “Preciso de alguém para cuidar de você e não que atrapalhe ou tenha risco de te prejudicar nesse momento”. Quando eu tentei voltar para casa e me introduzir ali no dia a dia de novo, aí era nítido que já tinha acabado. Quando acontecem essas coisas é que você vê quem realmente está do seu lado. Um dia até falei para ele “você acha que eu escolhi ter câncer? Ninguém escolhe ter câncer!”. Um monte de gente aí fora (na sala de quimioteria do Incan, local da entrevista) sofrendo para caramba com todo esse tratamento. Você não quer passar mal, não quer se sentir inútil e precisa entender que precisa aprender que os outros tem que cuidar de você, não só você cuidar dos outros — desabafa, no único momento em que se emocionou durante a entrevista.
Quem cuida de quem cuida?
A médica oncologista do Instituto do Câncer (Incan) do Hospital Pompéia, Verônica Denardin, explica que, desde a primeira alteração nos exames, é normal que as pacientes fiquem fragilizadas e com o emocional abalado. A partir deste momento, a rede de apoio é fundamental para a mulher, de acordo com a médica. Na realidade de seu consultório, o abandono está muito presente na vida das pacientes.
— Se tu passa por um período assim (de abandono), com todo o estresse, tudo acaba sendo mais difícil. Os sintomas da químio são exacerbados, os efeitos colaterais também. Às vezes, os tratamentos podem não dar certo, as coisas não funcionam como tem que ser para o melhor desfecho por causa desses acontecimentos — acrescenta a médica.
Às vezes, as pessoas pensam que nunca mais vão voltar como eram antes porque caiu o cabelo ou, então, porque no momento não tem uma libido, um desejo sexual
VERÔNICA DENARDI
Oncologista
Para orientar a paciente e sua rede de apoio, a oncologista informa que estimula o diálogo nas consultas, além do fato de orientar a disponibilidade de acompanhamento à paciente nas sessões de quimioterapia, por exemplo. Verônica defende que, neste momento, todos que desejam o bem da paciente são necessários e bem-vindos.
— É uma fase que a mulher vai precisar de muito apoio, mas ela vai voltar a ser uma pessoa normal. As pessoas pensam que nunca mais vão voltar porque caiu o cabelo ou porque não tem uma libido, um desejo sexual. Então, é conversar e dizer que isso é uma fase, que essa dificuldade não vai ser para sempre — sugere.
O abandono é um tabu
Psicóloga da Associação de Apoio à Pessoa com Câncer (Aapecan), Bruna Curra também defende o diálogo nesses casos. Conforme a profissional, é notório que muitas pacientes não chegam a comentar que foram abandonadas por ser mais uma perda durante o tratamento.
— Elas se isolam, se fecham, não comentam e sofrem sozinhas. Quando alguém que tem uma influência está na rede social e conta a história, ela encoraja outras mulheres a contarem também. E isso vai levar a informação para os homens entenderem que muitas coisas que acontecem no tratamento, como a questão da sexualidade, eles podem ter um espaço para também discutir. Eles têm muita dificuldade de comunicação. Isso é um abre portas para que o tema seja encarado de frente — diz Bruna.
A psicóloga ainda frisa que, além do abandono efetivo, há também o abandono afetivo, quando há o afastamento dentro da relação.
— Às vezes, eles podem estar morando na mesma casa, mas não tem mais nenhum tipo de relação e afeto. Então vamos trabalhar muitos recursos de enfrentamento, onde ela vai conseguir o suporte que não está tendo do companheiro. Assim, a gente encontra outras pessoas — orienta Bruna.
Na saúde e na doença
O autoconhecimento da relações públicas Mayara Zanotto Nepomuceno, 34, foi essencial para o diagnóstico de câncer de mama. Há três anos, ela acompanhava com autoteste um pequeno caroço, que não apresentava risco. Até que começou a dor.
— A doutora que fez minha eco não estava pegando o caroço. Eu estava deitada e falei que ia sentar e mostrar para ela. Aí, eu sentei e a mama veio para frente, ajudando ela a conseguir localizar. Quando tive o diagnóstico, entendi que me traria menos riscos fazer a remoção das duas mamas. Pesquisei muito, foram semanas quase enlouquecedoras entre o diagnóstico e a cirurgia, de fato — compartilha Mayara.
Há também quem seja a prova viva de que o apoio faz toda a diferença nesta caminhada. Um amor de adolescência foi o esteio da relações públicas durante o período mais difícil. O companheiro de quase 17 anos, Jônata Ferraz Nepomuceno, esteve ao lado de Mayara em todos os momentos.
— Eu estava na metade da graduação quando os nossos filhos nasceram (um casal de 13 anos). Concluí a graduação, fiz mestrado, estou no doutorado e ele sempre foi um parceiro. Não é aquilo que eu preciso pedir, implorar para fazer. A gente se ajuda no que pode. Emocionalmente, financeiramente, a gente faz as coisas juntos. A gente escolheu ter essa vida. E uma coisa que me marcou foi que ele falou aquela frase clichê: "na saúde e na doença". A gente quer viver na saúde, mas, eventualmente, vem coisas ruins também — relata.
Mayara, que já está curada, conta que durante o tratamento, precisou que o marido ajudasse em momentos como banho, refeições e até cortar a comida, devido às dores que sentia.
— Eu precisei ser muito cuidada, sempre fui a que cuidou, a que ia atrás, que faz tudo, a que pensa em todo mundo e tive que me deixar ser cuidada. Isso também foi impactante para mim. Organizamos as quimios de uma forma que ele (Jônata) pudesse me acompanhar. Então, em todas as quimios ele esteve lá segurando a minha mão — acrescenta, emocionada.
Em dezembro, Mayara comemora um ano da cirurgia para retirar o câncer e 15 anos de casada. E ela garante que as próximas semanas serão pensando em uma comemoração significativa para a vida que está para vir. Juntos e com saúde.
*Nome fictício