Quando o sinal fecha, eles entram em ação. Cada um usa as estratégias que tem para garantir alguns trocados em poucos segundos de sinal vermelho: cartazes com apelos para suprir a fome e o desemprego, manifestações artísticas ou simplesmente frases elaboradas rapidamente, que tentam sensibilizar motoristas e caroneiros que circulam pelas ruas de Caxias do Sul.
A Fundação de Assistência Social (FAS), por meio do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop Rua), diz não ter uma contagem atualizada sobre o número de pessoas que vivem do que ganham nas sinaleiras da cidade, mas reconhece que é perceptível o aumento desta população nos últimos tempos. Em outubro do ano passado, uma reportagem do Pioneiro apontava que ao menos 50 pessoas se posicionavam em sinais em busca de algum recurso financeiro.
Os perfis variam e foram mais diversificados com a pandemia, conforme perspectiva da própria FAS. Há quem tire o sustento da venda de produtos, como doces e outros petiscos. Tem os que possuem moradia e, muitas vezes, desempregados, encontram na sinaleira o sustento da família, além dos que vivem em situação de rua e pedem dinheiro no sinal eventualmente. Ainda existem aqueles que desejam deixar os espaços públicos e viver com mais dignidade.
É o caso de Adriano Campos, 37 anos. Com um cartaz em punho, ele pede, no sinal de uma rua central, ajuda para deixar o desemprego e conseguir uma moradia. De Pelotas e há dois meses em Caxias do Sul, Adriano conta que muitas vezes consegue pagar a pensão para dormir, mas nem sempre a arrecadação é suficiente, o que já o obrigou a passar a noite sob a chuva.
Por estar em situação de rua, o pessoal não quer dar emprego. Tem preconceito.
ADRIANO CAMPOS, 37 ANOS
que está em situação de rua em Caxias
— Por estar em situação de rua, o pessoal não quer dar emprego. Tem preconceito. Já trabalhei muito em engenho de arroz. Aqui, o que aparecer será bem-vindo — diz ele, ressaltando que não pretende voltar a Pelotas.
Em outra quadra bem próxima, ainda no Centro, um homem de 41 anos espera os carros pararem para fazer a oferta. Em uma pequena caixa de plástico, pirulitos, chicletes e torrones são guardados e oferecidos a quem para na sinaleira. Diferentemente de Adriano, o homem, que prefere não se identificar, relata ter uma moradia e utiliza o que ganha no sinal como complemento a alguns bicos que consegue como polidor de metais.
— Aqui é para te manter, quem sabe pagar um aluguel, quem precisa. É só um passatempo para quem está numa necessidade. Não dá para achar que vai ser sempre assim — avalia ele, que vende os produtos no sinal há dois anos.
Atenção redobrada à mendicância com crianças
A pluralidade de perfis de pessoas que acessam as sinaleiras de Caxias em busca de alguma contribuição é reforçada pelo Centro Pop Rua — um dos serviços do centro, justamente, é a abordagem social.
— Os malabares geralmente não abordamos, porque eles estão trabalhando. É um recorte da questão da cultura. A maioria não está em situação de rua e, sim, trabalha na rua. Eles trabalham, arrecadam, pagam a sua pensão e sobrevivem disso — explica a gerente do Centro Pop Rua, Márcia Furh.
Por outro lado, há assistência e direcionamento para outros públicos:
— Com a pandemia, a gente observou um aumento de famílias brasileiras e venezuelanas que estão saindo à rua para pedir recursos. Isso a gente atende, principalmente se tem crianças. É importante dizer que não é proibido ir para a sinaleira solicitar auxílio das pessoas. Mas não podemos permitir situações com crianças, porque elas estão expostas a riscos e o lugar delas não é ali — aponta Márcia.
Neste sentido, os trabalhos de abordagens social têm se intensificado e o pedido é que a população colabore, informando a FAS, sempre que ver uma situação similar. Marcia conta que uma das mais recorrentes nos últimos meses, mas que teve queda neste ano, são as famílias indígenas venezuelanas que saem de Porto Alegre para fazer a mendicância em Caxias.
— Eles chegam em Caxias na quinta e vão embora na segunda. Vêm para arrecadar coisas... Dinheiro, mantimento, roupas. E retornam para a base, que é em Porto Alegre. Eles diminuíram muito, justamente pelo trabalho de orientação que se fez. Não podemos proibi-los de vir. No entanto, as crianças não (podem estar junto). É bastante complexo, mas precisamos da colaboração das pessoas para fazerem a denúncia — solicita a gerente.
Por serem populações sem ponto fixo, há dificuldade de ter sucesso em todas as abordagens. Os servidores do Centro Pop atuam, inicialmente, na orientação e encaminhamentos a outros serviços da rede. Em algumas situações, há o acionamento do Conselho Tutelar.
— O que é interessante, nestes casos, é a comunidade não ofertar o que está sendo pedido. Porque assim eles conseguem ter um direcionamento, uma adesão, em nível de assistência, de saúde e de educação. Temos meios de ajudá-los sem eles estarem expostos — reforça a diretora de proteção social da FAS, Jamila Tassemeier.
A QUEM DENUNCIAR PEDINTES COM CRIANÇAS
:: Conselho Tutelar (plantão): (54) 99104-7998.
:: Sobreaviso da FAS (22h às 7h, de segunda a sexta-feira e aos finais de semana): (54) 98404.9921
:: Abordagem social do Centro Pop Rua (de segunda a sexta-feira, a partir das 8h): (54) 98403.8864.
Famílias indígenas brasileiras também são monitoradas
Em outro contexto, mas no mesmo cenário de presença na rua, a FAS também faz abordagem e presta assistência a famílias indígenas brasileiras. Neste caso, um olhar especial é voltado para a presença de crianças em idade escolar.
— Estamos no período escolar. Então tem o acerto, junto aos caciques, que eles não podem (trazer as crianças destas faixas etárias). Agora, os mais pequenos, é da cultura deles (estar junto com as mães vendendo o artesanato) e respeitamos. No auge do inverno, procuramos fazer uma abordagem mais específica para que eles retornem ao local de origem — detalha Márcia.
Conforme levantamento da FAS, os núcleos familiares vêm de diferentes regiões do Estado, como Erechim, São Leopoldo e, mais próximo daqui, de Farroupilha. Eles ficam determinados períodos e depois voltam às cidades de origem.
A presença deste público, conforme dados da Fundação, diminuiu em Caxias. Em termos comparativos, em janeiro do ano passado foram identificados e abordados 39 núcleos familiares. No mesmo mês de 2022, foram contabilizadas três situações semelhantes.
Arte em troca de algum trocado
Para os veículos, a luz vermelha no semáforo representa uma ordem de parada obrigatória. Para Ramon dos Santos, 28 anos, é o momento de apresentar as suas manifestações artísticas do mundo circense. A apresentação dura poucos segundos, mas é o suficiente para gerar alguns trocados da plateia — no caso, os motoristas e caroneiros de veículos que circulam pela movimentada BR-116.
Longe de romantizar os perigos e a vulnerabilidade do seu local de trabalho, Ramon conta que está há um ano em Caxias do Sul e tem tirado seu sustento e a pensão de um filho de quatro anos do que ganha na sinaleira — a criança vive com a mãe em uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre.
— Quando eu me separei da mãe do meu filho, eu precisava estar em uma cidade que não fosse tão longe, mas também não precisava ser tão perto. Já tinha passado por aqui quando estive viajando. Em Caxias, eu consigo trabalhar, tem uma aceitação um pouco melhor, não sei se é pelo nível cultural ou poder aquisitivo das pessoas. É da sinaleira que eu como, é da sinaleira que eu pago a pensão, tiro o dinheiro para ir ver meu pequeno — conta o artista de rua.
No ano passado, quando chegou a ver a neve da janela da casa onde morava, a situação financeira estava melhor, segundo ele. Hoje, em função da menor arrecadação, ele teve que deixar o aluguel e viver em situação de rua. Uma cadelinha, adotada há cerca de uma semana e batizada como Dora, tem sido o apoio e a companhia do rapaz.
— Com a pandemia, tive que fazer alguns cortes e passei a morar na rua. Antes, eu era mochileiro, passei seis anos viajando. Então, a gente aprende a se virar. É meio que um manual de sobrevivência na selva de pedra — descreve Ramon.
Sobre a receptividade dos moradores de Caxias em suas ações no trânsito, o artista de rua conta que há diferentes perfis. Mas se sente mais à vontade e seguro aqui do que na Capital.
Tem vezes que nem chegam a abrir o vidro do carro, mas eu percebo pelos lábios que a pessoa está me mandando trabalhar. Às vezes dói e magoa, mas dia após dia estamos aí
RAMON DOS SANTOS
Artista de rua
— Quem mais ajuda é quem menos tem. Dificilmente eu ganho uma nota maior de um carro importado. E tem vezes que nem chegam a abrir o vidro do carro, mas eu percebo pelos lábios que a pessoa está me mandando trabalhar. Às vezes dói e magoa, mas dia após dia estamos aí — finaliza Ramon.
948 moedas já viraram refeições no Restaurante Popular
Lançado no ano passado, o projeto Moeda Mão Amiga já gerou 948 refeições no Restaurante Popular de Caxias do Sul. Funciona assim: a comunidade adquire as moedas em pontos de venda parceiros, ao custo de R$ 1 cada e, depois, pode repassar a pessoas que pedem dinheiro nos semáforos, por exemplo. Quem ganha as moedinhas de plástico pode trocá-las por uma refeição no restaurante localizado na Rua Sinimbu. É uma forma de garantir que o ato de solidariedade ganhe um destino adequado, suprindo a fome e oportunizando o acesso a outros serviços da proteção social.
Segundo a Associação Mão Amiga, idealizadora da iniciativa, a adesão da proposta foi mais forte logo após o lançamento: foram produzidas 31.810 moedas no primeiro momento. Em dezembro do ano passado, o projeto repassou ao restaurante o valor de R$ 20.658 para ampliação dos serviços provenientes da iniciativa.
Outra questão apontada é que muitas pessoas que buscam a refeição no Restaurante Popular acabam sendo beneficiadas de outras formas, como capacitação para a inserção no mercado de trabalho. No local, mediante interesse e cadastro, há oferta de cursos profissionalizantes com professores voluntários.
Além de Caxias do Sul, a Moeda Mão Amiga também pode ser encontrada em Flores da Cunha. Conforme o projeto, a comunidade do município vizinho se interessou pela iniciativa, uma vez que muitos moradores acabam se deslocando a Caxias com frequência e conseguem ajudar quem está precisando. Ao todo, são mais de 30 pontos parceiros que comercializam as moedinhas.