Um problema histórico de Caxias do Sul parece ter dado, ao longo deste ano, mais passos que o afastam de uma resolução. Com a perda de poder econômico nas famílias, devido à crise econômica gerada pela pandemia, a demanda por vagas na Educação Infantil quase dobrou em relação ao fim de janeiro. Isso ocorre depois de um período de baixa na procura, já que inicialmente a pandemia fez reduzir a lista de espera.
Conforme a secretária da Educação, Sandra Negrini, a fila de espera, que era de cerca de 1,6 mil crianças no final de janeiro, agora está próxima de 3 mil. Isso apesar de que, durante o ano, outras 3 mil foram colocadas em escolas. A secretária aponta que a perda de renda faz com que exista uma quantidade expressiva de pais que antes pagavam instituições privadas e deixaram de ter condições financeiras para isso. Outro aspecto, diz ela, é a migração de famílias, que chegam a Caxias em busca de oportunidades de emprego.
A demanda reprimida na faixa dos zero aos três anos é um problema que se arrasta há quase uma década e nunca chegou perto de ser solucionada. A secretária diz que existe um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do município com a prefeitura, que estabelece que 50% dessa faixa etária tem o direito de ter a vaga provida pelo município, o que ainda não foi cumprido.
Sem capacidade estrutural na rede pública, o atendimento da demanda na etapa de creche da Educação Infantil passa atualmente pelo credenciamento de vagas, em que a prefeitura paga para uma escola da rede particular fornecer o atendimento às crianças. A secretária diz que ampliar essa estratégia é uma das soluções no planejamento de curto prazo:
— A gente vai abrir um novo credenciamento em alguns bairros onde tem maior procura. Temos mais de R$ 15 milhões planejados para reformas e construção de escolas infantis em diferentes bairros onde tem maior demanda.
A ideia é reformar 12 escolas e construir outras cinco. As novas ficariam nos bairros Belo Horizonte, Nossa Senhora das Graças, Ana Rech, Charqueadas e Mariani. Com isso, a capacidade prevista é de 700 novas vagas, ou seja, um número bem distante da lista atual de espera. Além disso, a própria secretária admite que a ideia é começar as construções no ano que vem, mas se elas ficarão prontas em 2022 ainda não é possível dizer.
Etapa de quatro e cinco anos também preocupa
Embora a etapa creche seja a mais problemática em termos de incapacidade de atendimento, em outra ponta a faixa de estudantes de quatro e cinco anos, cuja a obrigatoriedade de oferta de vagas para 100% das crianças já está em vigor, também preocupa a secretária. Ela conta que houve aumento de procura de estudantes que saíram da rede privada. Para suprir essa necessidade, novas vagas em escolas foram criadas, mas ainda assim Sandra estima que haja crianças que não chegaram a ser inscritas pelos pais e estão fora da escola.
Demanda maior também na Defensoria Pública
Parte das famílias que não conseguem vagas na Educação Infantil diretamente com a Secretaria Municipal da Educação recorrem ao Poder Judiciário para ter o direito assegurado. Famílias com renda de até três salários mínimos podem contar com o apoio da Defensoria Pública do Estado para ajuizar as ações. Só que a demanda está tão grande que a agenda está disponível apenas para janeiro de 2022. Para se ter uma ideia, antes da pandemia, esse tempo era de um mês.
O defensor público Raphael Varella Coelho faz de 15 a 18 atendimentos por semana apenas para este tipo de demanda. Ele conta que, ao longo da pandemia, houve momentos de baixa na procura por causa das medidas de restrição de circulação ou do avanço da curva de contágio — o que, naturalmente, deixa os pais mais apreensivos em mandar os filhos para a escola. Mas, nos últimos meses, o cenário mudou:
— A partir de junho de 2021, a procura tem sido gigantesca. O incremento é significativo. Tanto que eu ampliei o número de atendimentos — detalha.
Coelho faz uma estimativa: a média de tempo entre o momento em que a família desperta para a necessidade de uma vaga e o que ela consegue essa vaga, quando há a necessidade de intervenção da Defensoria, é de ao menos cinco meses:
— Quando a Defensoria Pública atua, o município já falhou, porque já não disponibilizou essa vaga para a criança administrativamente e a gente precisa de uma decisão judicial dizendo: município, dê a vaga a essa criança, sob pena do Poder Judiciário bloquear valores das contas do município para que essa vaga seja custeada com verbas públicas em uma escola particular. E aí o que acontece, e aqui vai um desabafo, é que via de regra a vaga aparece como em um passe de mágica.
Dos casos que chegam à Defensoria, a maioria dos pais quer o acesso ao serviço em meio turno. Nesses casos, as vagas são deferidas imediatamente. Porém, quem precisa de turno integral passa por um processo mais complexo. Primeiro, é feita uma triagem da própria Defensoria, que questiona sobre impossibilidade de outros membros da família ou rede de apoio ficarem com a criança, além da comprovação de que a renda é insuficiente para garantir o contraturno. Depois, o próprio Judiciário, segundo o defensor público, costuma negar a vaga em primeira instância, o que leva a um recurso ao Tribunal de Justiça. E essas decisões são as mais variadas, podendo garantir ou não a escola integralmente ás crianças.
Coelho avalia que a pandemia agravou o cenário de falta de vagas em Caxias, mas salienta que esse é problema que se arrasta há anos, passando por diversos governos municipais, e destaca que o acesso à escola é um direito constitucional:
— Me parece que falta ao poder público realmente estabelecer a prioridade absoluta na efetivação desses direitos.
Dora precisa de escola
O lugar onde Dora Formaio de Oliveira, dois anos, passará cada dia da semana que a mãe tem que trabalhar é incerto. Francieli Beltrame Formaio, 28, inscreveu a filha para concorrer a uma vaga na Educação Infantil há cerca de sete meses, mas ainda não recebeu retorno. Em abril, a professora de História voltou às salas de aula e, desde então, teve que adotar muito jogo de cintura para poder manter os cuidados com a menina:
— Eu deixo ela cada dia com uma pessoa da minha família ou conhecida. Às vezes, eu tenho que trazer ela para a escola. Normalmente, ao menos uma ou duas vezes por semana, eu trago ela junto comigo para eu dar aula.
Francieli conta que chegou a cotar escolas para deixar Dora, mas não tem condições de pagar, até porque por enquanto não conta com o auxílio financeiro do pai, que conseguiu um emprego recentemente. Mesmo assim, diz a professora, a pensão será insuficiente para garantir o acesso à escola para a filha.
João Vitor conseguiu vaga na Justiça
Depois de ficar cerca de seis meses na fila de espera por uma vaga, João Vitor Soares de Quadros, três anos, começou a frequentar a escola há cerca de 15 dias. A família fez a inscrição dele em junho mas, sem retorno, procurou a Defensoria Pública e teve o processo ajuizado no dia 15 de setembro. No dia seguinte, o juiz intimou o município para providenciar a vaga. Menos de um mês depois, em 13 de outubro, o menino começou a ir para a escola.
A mãe Ivete Aparecida Azevedo Anastácia, 55 anos, conta que quando procurou a vaga estava sobrecarregada por acumular os cuidados com o filho e com o pai doente. Mesmo depois da morte do pai, ela decidiu manter João na escola porque acredita que isso é importante para o desenvolvimento dele:
— O João Vitor já está grandinho, está na hora de pegar o ritmo da escola. Eu acho que é bom para ele conviver com os coleguinhas — explica.