A Casa Vitória, que entrará em funcionamento em Canela, é emblemática na luta contra a violência doméstica. Isso porque é a primeira da região das Hortênsias destinada a acolher mulheres que são vítimas de ameaças, abusos e agressões. O espaço entrará em funcionamento nos próximos dias, sendo que nesta quarta-feira (8) será realizada uma reunião no abrigo com a equipe de voluntários que atuará no espaço por dois meses em um projeto piloto. A inauguração do espaço ocorreu em 27 de agosto, dentro da programação do Agosto Lilás, mês dedicado à conscientização e combate contra a violência doméstica.
O abrigo é uma reivindicação antiga da juíza da 2ª Vara Judicial da Comarca de Canela, Simone Chalela. Ela ressalta que os casos de violência contra a mulher têm aumentado a cada dia. Conforme a juíza, eram entre 25 e 35 denúncias por mês e há 204 medidas protetivas tramitando atualmente no município. Em agosto, a média de casos aumentou para dois por dia.
— A gente vê que os números de violência doméstica aqui em Canela são muito altos. Embora as pessoas nem imaginem, tampouco acreditem nisso, eles são. No início da pandemia eu senti o aumento exponencial do número de vítimas de violência doméstica. Foram casos muito graves, inclusive há 15 dias tivemos aqui uma tentativa de feminicídio.
Foi aí que a magistrada buscou apoio da iniciativa privada para, em conjunto com o município, viabilizar a obra. A prefeitura cedeu o espaço e transformou uma igreja em um abrigo:
— Conseguimos algo que é diferente das outras casas no Estado. O espaço era uma igreja e foi transformada em uma casa com três quartos para acolhimento. Será um serviço público de excelência — destaca a juíza.
Chance de romper a violência
Atualmente, as mulheres agredidas em Canela registram ocorrência na delegacia e são encaminhadas para o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas). Sem ter para onde ir, muitas precisam voltar para a casa que dividem com o agressor.
— Quando falo sobre esses números são só daquelas que denunciaram, porque muitas nem procuram ajuda. São muitas que se calam porque não têm para onde ir. Isso acarreta em um ciclo crescente de violências de toda ordem, que só aumentam com o passar do tempo. Elas têm medo, têm vergonha e é por isso que precisamos de um lugar específico para que elas tenham coragem de mudar isso — afirma Simone, juíza da 2ª Vara Judicial da Comarca de Canela.
Ela explica que os profissionais são todos voluntários, que vão ficar na ativa até novembro. Esse é o prazo para que o município selecione a instituição que irá gerenciar o abrigo. A juíza lembra que a violência não é apenas física, mas também psicológica e patrimonial.
— O que eu mais vejo no meu trabalho é a dependência psicológica. Muitas mulheres não sabem que estão sofrendo violência. Às vezes, elas falam na audiência: "desculpa, eu também errei". Elas explicam coisas que são violência contra elas.
A cidade, assim como Caxias do Sul, lançou um violentômetro para indicar às mulheres o risco que correm e como medir a violência. O material orienta sobre identificar sinais e como e onde buscar ajuda. A juíza ressalta que a Casa Vitória será mais do que um espaço de acolhimento, mas, sim, uma chance de romper a violência.
— A Casa Vitória é muito mais que um local de acolhimento, será um espaço de atendimento, ressocialização e possibilidade de ressignificação, com a ajuda de uma equipe multidisciplinar. Ela será uma ajuda necessária para romper o ciclo de dependências psicológicas ou financeiras, e mudar percepções de vida, incentivando as mulheres a ocuparem seus locais de fato e de direito na sociedade, através da independência, autonomia e protagonismo feminino — completou a juíza.
A equipe será composta por psicóloga, assistente social, setor jurídico e também terá oficinas terapêuticas, visando a inserção ou reinserção no mercado de trabalho para conquistarem independência financeira.
Ouça a entrevista da juíza Simone Chalela ao Gaúcha Hoje
Igreja foi transformada em abrigo
A prefeitura de Canela adquiriu uma igreja e transformou o prédio em uma residência. O secretário de Obras, Luiz Cláudio da Silva, liderou a reforma do espaço.
— Em 45 dias transformamos a igreja em uma casa para receber vítimas de violência doméstica. Fizemos toda a estrutura e entregamos a casa mobiliada. Também há uma brinquedoteca, escritório, sala do abraço, horta suspensa e roupas para mulheres e crianças.
Ele explica que o município investiu R$ 15 mil e a mão de obra. O restante dos recursos partiu de parcerias com empresas, entidades e doações da comunidade.
— Somos a 14ª casa para abrigar mulheres no Estado e a primeira na Região das Hortênsias. É uma obra emblemática. O ideal seria não ter que produzir uma casa para isso mas, infelizmente, em pleno século 21, ainda temos que trabalhar isso, que ver mulheres e crianças passarem por situações graves de violência dentro de casa.
O secretário ressalta que considera a Casa Vitória um dos melhores trabalhos que já coordenou.
— Toda a equipe se dedicou e foi tudo pensado e escolhido com muito carinho para que elas sejam acolhidas e se sintam seguras e confortáveis. Há câmeras instaladas no espaço ligadas com a BM e a Polícia Civil. Elas têm toda a proteção e acolhida porque foi pensado em todos os detalhes.
Assessoria jurídica feita por advogadas voluntárias
Ainda em junho, Simone Chalela procurou a OAB, Subseção Canela e Gramado, para que ajudasse na implantação da Casa Vitória. A entidade se uniu à luta e promoveu ações para arrecadar recursos que foram doados para viabilizar o espaço. Além disso, um grupo de 11 advogadas vão atuar voluntariamente para prestar consultoria jurídica às vítimas.
— A partir de agora, sempre que houver demanda, a OAB vai auxiliar na orientação jurídica das mulheres. Temos um grupo de advogadas que faz parte da nossa Comissão da Mulher Advogada que fará as consultas e acompanhamentos. Fizemos questão que fossem mulheres atendendo outras mulheres — afirma a presidente da Subseção, a advogada Anne Grahl Müller.
Ela explica que essas mulheres que passam por violência doméstica precisam passar por orientação jurídica, seja para ir na audiência, quando é formalizada a denúncia, ou para tentar ajustar a vida com a questão de divórcio, por exemplo:
— Acredito que essa orientação jurídica será mais um pilar para dar sustentação a uma mudança na vida das vítimas. Muitas coisas legais/burocráticas são necessárias como orientar a denúncia crime, acompanhar na audiência, orientar e encaminhar divórcios, alimentos — ressalta a advogada.
Números
Em Canela, no ano de 2020, 142 mulheres foram ameaçadas, 119 sofreram lesão corporal, oito foram estupradas, houve um registro de feminicídio consumado e um registro de tentativa de assassinato.
Como funcionará
São duas frentes a partir do Registro de Ocorrência Maria da Penha: as que precisam de abrigamento e as que não precisam de abrigamento.
Não necessitando de abrigamento:
- Receberá consulta psicológica na Casa Vitória;
- Avaliação psicológica, social e jurídica;
- Receberá acompanhamento na audiência da medida protetiva;
- Inclusão nas oficinas da Casa Vitória visando inserção no mercado de trabalho.
Necessitando de abrigamento:
-Encaminhamento junto dos filhos para a Casa Vitória;
-Receberá roupas, kit higiene e avaliação familiar;
-Enquanto na Casa, as vítimas receberão alimentação, cuidados, consultas psicológicas, assessoria jurídica e participação em oficinas;
-Com o afastamento do agressor, a vítima retorna a sua residência em segurança.
Onde buscar ajuda
:: Central de Atendimento à Mulher: telefone 180
:: Brigada Militar: telefone 190
ou ligue para: (54) 32780032