— Sou de Vacaria, mas trabalhava como representante de artigos de relojoaria, por isso estava sempre viajando. Naquele sábado eu estava em Porto Alegre e fui até uma igreja de lá. Senti uma batida no meu ombro. Era Gilmar Rios, um cliente de Rio Pardo que também era adventista. Disse que o sogro dele estava internado no Hospital Lazzarotto, um hospital que hoje nem existe mais, e que precisava de sangue. Aceitei sem problemas, combinamos o horário, e esta foi a primeira vez que doei; eu tinha 28 anos. Depois disso, mais que um simples vendedor, passei a ser amigo da família — relata seu Antonio Carlos Gomes da Silva, sobre o dia em que tornou-se doador de sangue.
A poucos meses de completar 70 anos — no dia 24 de setembro — justamente por conta da idade, seu Antonio se despede da rotina que manteve desde que atendeu ao pedido do cliente (e amigo) de Rio Pardo. Foram 41 anos com média de quatro doações ao ano, o máximo permitido para pessoas do sexo masculino, completando 164 doações. Segundo ele, a cada doação era coletada a quantidade limite, 470 ml de sangue, totalizando, portanto, 1,88 litro por ano e aproximadamente 77 litros doados — 11 vezes mais do que o total de sangue que ele tem no corpo.
Considerando que cada bolsa de sangue pode salvar até quatro vidas adultas, chega a 656 o número de pacientes que podem ter se beneficiado das doações do voluntário Brasil afora. Sim, porque seu Antonio era viajante, lembra? Ele conta que já doou em diversas cidades do Nordeste, "nos dois Mato Grosso", São Paulo — Capital e Interior —, além do Rio Grande do Sul, incluindo vários hospitais de Porto Alegre e, até mesmo Vacaria, cidade onde mora e que não conta com ponto permanente de coleta. Mesmo quando parou de viajar, continuou doando, tornando-se frequentador assíduo do Hemocentro Regional de Caxias do Sul (Hemocs), onde realizou sua última doação em maio deste ano.
— Sempre ouvi dizer que uma pessoa saudável devia doar sangue e eu atendi. Me senti bem fazendo isso e não tenho nem marcas nos braços, mesmo com todas as fincadas de agulha que levei. Felizmente sempre me dei bem e não tenho do que me queixar — brinca o aposentado, que nunca precisou de uma transfusão.
— Viajei por todo Brasil, conheço 95% do Rio Grande do Sul e hoje continuo trabalhando como motorista particular. Quem precisa ir para algum lugar, eu levo. A estrada é minha vida. Sofri apenas um acidente grave até hoje, e foi aqui perto, na Curva da Morte (em Vacaria), mas não cheguei a precisar de sangue — conta.
Além disso, seu Antonio afirma se manter sempre em dia com a saúde e que poucas foram as vezes que não esteve apto à coleta de sangue. Uma delas foi em Passo Fundo, no dia em que levou um idoso ao hospital da cidade. Não passou na entrevista porque pegaria a estrada logo após a doação. Outra vez foi no Hemocs, em junho, naquela que seria a "doação de despedida". O impedimento foi uma alteração na pressão, também apresentada por alguns conterrâneos dele após a viagem de duas horas de Vacaria a Caxias do Sul. Episódios que não diminuem o tanto que seu Antonio fizera até então.
— Ele contribuiu muito com a cidade e com a região toda que depende do fornecimento do Hemocs. Sempre disposto e colaborativo, um exemplo a ser seguido por todos — avalia Eliane Kuhn, enfermeira responsável pela captação de doadores da Secretaria Municipal de Saúde de Vacaria.
Assim como outras cidades da Serra, a de seu Antonio oferece transporte gratuito a moradores que se disponibilizem a doar sangue no Hemocs. A enfermeira responsável explica que as datas são definidas conforme a procura pelo serviço, que pode ser solicitado pelo (54) 3231-5430. Segundo Eliane, os grupos sempre são acompanhados por um técnico em enfermagem, que monitora o estado de saúde dos doadores, especialmente no retorno.
O trajeto de ida e volta entre as duas cidades totaliza 228 quilômetros. Em duas décadas, com a média de quatro doações ao ano, foram 18.240 quilômetros percorridos por seu Antonio — praticamente a distância entre Vacaria e Tóquio, no Japão. Sem contar os quilômetros rodados por ele ainda antes de se fidelizar ao Hemocs. Uma longa trajetória em prol da vida.
Um exemplo que será seguido
Cinco moradores se deslocaram de Vacaria até o Hemocs, em Caxias, para doação de sangue no dia 16 de junho. Neste grupo estava seu Antonio, que pretendia doar pela última vez, e também Andrielle Laís Paganella, 16, que, junto da mãe, pegou o transporte para doar pela primeira vez. Ainda durante a viagem, a adolescente foi procurada pelo voluntário veterano que a entregou uma missão: a de continuar doando no lugar dele.
— Fiquei com um pouco de medo, porque ainda não sabia nem se conseguiria doar, mas me senti feliz por ser convidada a isso e realmente pretendo continuar, já estou na contagem regressiva para poder doar de novo — relata a jovem que, coincidentemente, decidiu doar sangue a convite de um amigo da igreja que frequenta, da paróquia Nossa Senhora da Oliveira, padroeira que também dá nome ao hospital de Vacaria.
— Um amigo seminarista comentou que estavam fazendo campanha naquela semana pelo Dia Mundial do Doador de Sangue (14 de junho) e que estavam com o estoque baixo. Convidei minha mãe e nos inscrevi no transporte da prefeitura. Acho que mais pessoas deveriam doar sangue porque é uma experiência muito legal — completa Andrielle.
A importância da fidelização
Os chamados doadores fidelizados — que doam três ou quatro vezes por ano — representam hoje cerca de 35% do total de voluntários que contribuem com o abastecimento do estoque de sangue do Hemocs. De acordo com o assistente social do hemocentro, Rafael Moreira, os doadores de "primeira viagem" são 25% e a maioria, 40%, é composta pelos chamados doadores esporádicos.
— Nosso objetivo é sempre fidelizar, porque além de garantir a continuidade do abastecimento, esse grupo também costuma ter menor taxa de inaptidão. São pessoas que chegam mais preparadas, porque já conhecem as regras. Isso acaba sendo bom pra saúde delas também, porque acabam aderindo a manutenção de hábitos mais saudáveis — relata Moreira.
Segundo ele, o percentual de doadores fidelizados tem aumentado nos últimos anos, assim como o de esporádicos, demonstrando a efetividade do trabalho de conscientização acerca da importância da doação fomentado pelo Hemocs desde sua fundação, em 1997.
— O sangue é um direito de todos, distribuímos a toda rede SUS de Caxias e região, mas a única forma de viabilizar esse insumo é a partir da doação — completa o assistente social.
Ajude
:: O Hemocs continua com baixo estoque de sangue, especialmente dos tipos O-, O+ e A+. Doações podem ser agendadas pelo (54) 3290-4543 e (54) 3290-4580 ou por meio do WhatsApp (54) 98418.8487.