Com um olhar marcante e aquela vivacidade típica de quem é apaixonada pela leitura e escrita, a caxiense Maria Cleunira Boff, 76 anos, conta que já confeccionou mais de 20 cadernos para alfabetizar crianças desde o começo da pandemia. A professora aposentada passou 32 anos lecionando para alunos da então 1ª série, hoje 1º ano, do ensino fundamental, em Caxias do Sul. Há três anos, Cleu, como é chamada por amigos e familiares, vive no Residencial Florence, no bairro Desvio Rizzo. Foi lá que, ao conversar com as servidoras, percebeu que sua vocação para o ensino poderia ajudar crianças a ler e escrever.
— Eu passei 32 anos em sala de aula. Dizem que professor ganha pouco e, é verdade, mas nada paga o prazer de ver os pequenos aprenderem — conta a aposentada.
Tudo começou quando a técnica de enfermagem Juliana Bertoni, 37, viu a idosa produzir cadernos para os netos Heitor, de oito e, Eduardo, de sete anos. A profissional contou para a professora aposentada que a sua filha Valentina não estava aprendendo com as aulas online:
— No início da pandemia minha filha estava começando a ser alfabetizada. Eu via a Cleu fazendo os cadernos para os netos. Ela escolhia as figuras em revistas, recortava, colava, com cuidado e carinho. Escolhia os poemas e as músicas com amor e eu pedi para ela fazer e ela aceitou, então fez um para a Valentina.
A menina, então com seis anos, criou com a profe Cleu um vínculo que não conseguia estabelecer com as professoras nas aulas pelo computador.
— Foi um incentivo fundamental para a minha filha. A Valentina começou a aprender e sempre falava da profe Cleu. Ela é carinhosa e dedicada e esse amor chegou até a minha filha. Ajuda as crianças, continua colaborando com a sociedade e fazendo o bem que é o que mais precisamos agora. Ela é dessas pessoas que se importam — reconhece Juliana.
O pequeno Marco Gabriel, de seis anos, também ganhou um caderno. Ele é irmão da estagiária de Fisioterapia do Residencial, Anelise Nunes, 26:
— Eu entreguei para ele que começou a completar o caderno e ele me olhou e perguntou: "Mana quem fez esse caderninho fez com muito amor?". Eu respondi que sim e ele falou: " Eu vou responder com todo o amor também".
As palavras emocionam Cleu que começou a lecionar em Cambará do Sul, na Vila Ouro Verde, depois trabalhou em uma escola no Desvio Rizzo, em Caxias do Sul e logo depois chegou a E.M.E.F. São Vicente de Paulo. Lá ela passou 32 dos 76 anos de vida. Mãe de dois filhos, Sabrina, 42 e Wiliam, 39 anos, ela morava sozinha e decidiu que o melhor seria viver na companhia de outros idosos no residencial. A alegria da vida de Cleu são os netos.
— Meus netos são a paixão da minha vida. Eles dizem que aprenderam a ler e escrever com a vovó. Quando as meninas daqui me pedem para fazer o caderno, perguntam se cobro, e eu respondo que o pagamento é fazer o bem, é que as crianças aprendam. Fiz pedagogia, mas me encontrei na 1ª série com os pequenos. Não errei de profissão — emociona-se.
Ela não segura as lágrimas ao lembrar que as famílias eram compostas por mais de um filho e os pais chegavam a escola e pediam que ela fosse a professora das outras crianças que também ingressavam no colégio.
— Conquistei o amor, carinho e respeito dos pais dos alunos. A cada ano chegavam as famílias e eu já tinha sido professora de uma das crianças então pediam que eu fosse do irmão mais novo e assim eu ia ensinando a todos.
Cadernos personalizados
Com alguns dos cadernos que produziu, em mãos, ela mostra orgulhosa que cada um deles é personalizado. Os cadernos são entregues a ela em branco e chegam as mãos das crianças repletos de figuras coloridas, desenhos e exercícios para que eles mergulhem no mundo da leitura. Na parte de dentro de um deles, a personagem Mônica, de Maurício de Sousa, chama a atenção.
Na primeira folha, com a bela letra de professora, está escrito: "Nossas Amigas as Vogais". No ano passado, ela criou 15 cadernos. Nesse ano, já fez mais cinco e está com dois para produzir. Para criar cada um, ela leva em torno de 15 dias. No final de cada caderno tem um pedido e um envelope: "Vai um envelope para você escrever um bilhete para o papai e a mamãe". Dos cadernos que ela já produziu, um foi para Uruguaiana e, outros dois, para Minas Gerais.
— Não é um caderno em branco que não cria interesse. Ele é colorido, com as figuras, e eles adoram. Eu procuro figuras com as quais eles se identificam, tem as vogais, exercícios para completarem, pintura, compor, e compreensão de texto. Também tem um roteiro de como escrever um bilhete. Ensinar é um presente valoroso. Continuo professora, à distância, mas ainda sou professora. Eles amam os cadernos.
Atividades como essa elevam a autoestima dos idosos
A psicóloga e gerontóloga, Melissa Appio, 47, que atua no residencial, conta que a produção passa por uma pesquisa de como é cada criança. Depois Cleu seleciona com cuidados as figuras para começar a colagem, os desenhos e a produção do conteúdo. Isso criou uma rotina saudável:
—Atividades como essa elevam a autoestima e ajudam os idosos a combater doenças. Ela acorda cedo, por volta das 5h30min. Senta no refeitório, e começa a produzir os cadernos. Procura figuras, recorta, cola, cria o conteúdo. O envelhecimento ativo proporciona muitos benefícios aos nossos idosinhos. Eles elevam a autoestima, ficam motivados para o dia a dia e diminui a propensão a doenças. É isso que acontece com a nossa Cleu. Ela se dedica com muito amor e muito capricho aos cadernos que ela produz para as crianças.
Melissa ressalta que a professora também pratica dia a dia a empatia.
— Ela desenvolve esse sentimento de empatia pelo próximo nesse momento de pandemia. A Cleu está vivendo em isolamento e procurou algo que faz bem para si própria e ao próximo — complementa a psicóloga.
A produção é um orgulho para quem convive com a idosa.
— A Cleu é um exemplo. Começou com os netos e criou interesse entre as nossas funcionárias e colaboradores e até as filhas dos vovôs e das vovós quando veem os cadernos se interessam e fazem encomendas. Quando ficaram sem receber visitas e, sem que os profissionais terceirizados pudessem vir a casa por causa da pandemia, ela encontrou uma maneira de se distrair e manter a mente ativa — conta uma das proprietárias do Residencial Florence, Marina Lamb Martins, 39.
Os amigos do lar aprovaram a ideia e também ajudam:
— Eu procuro as figuras nas revistas e ajudo a recortar. É bom ajudar — conta Adão Luis Ribeiro da Rosa, 56.
Aprendizagem até para os adultos
Não foram apenas as crianças que aprenderam com os conteúdos desenvolvidos pela professora. O senegalês Fallou Ndiaye, 34, é esposo da cuidadora de idosos Maria Luísa Preto Ndiaye 50. Como ele não sabia falar português ao ver os cadernos Maria Luísa perguntou se Cleu poderia desenvolver um para o esposo. O dele foi criado com palavras de adulto, o alfabeto conta com palavras como celular, por exemplo.
— Hoje ele está fazendo um curso de português na UCS e foi por meio da ajuda da Cleu que ele pode começar a ler e aprender a escrever em português. Ela é uma ótima professora — revela Maria Luísa.