A triste marca de mil mortes relacionadas à covid-19 foi atingida nesta terça-feira (1º) em Caxias do Sul. Com cinco registros nas últimas 24h, a contagem realizada pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) passou a ter quatro dígitos, totalizando 1.003 moradores da cidade que perderam a vida por conta da doença desde o início da pandemia. São 393 dias, ou um ano e quase um mês, que se passaram entre a primeira e a milésima morte oficializada em Caxias.
O município é o terceiro do Rio Grande do Sul com mais óbitos registrados, ficando atrás apenas de Porto Alegre (4.767) e Canoas (1.412), segundo registros da Secretaria Estadual da Saúde (SES). Ainda conforme os dados estaduais, 28.192 pessoas morreram por covid-19 no Rio Grande do Sul, sendo 2.819 na macrorregião da Serra. No Brasil, o número de vítimas já passa de 463 mil.
Um caminhoneiro de 69 anos foi o primeiro caso de morte relacionada à infecção por coronavírus confirmado em Caxias do Sul, ainda que tenha ocorrido fora da cidade e, até mesmo, do Estado. Foi em solo baiano, no município de Feira de Santana, que o idoso morreu no dia 4 de maio de 2020, após receber atendimento em São Gonçalo dos Campos, por onde viajava.
A contagem municipal passou a ser feita em dois dígitos no mês seguinte, com 11 mortes registradas no dia 22 de junho. Desde então, a curva foi aumentando e, ainda em 2020, no dia 3 de setembro, Caxias do Sul ultrapassou a marca das 100 mortes, totalizando 103 casos.
Cada número, uma história
Cada número contabilizado diariamente no painel de indicadores da covid-19 é uma vida perdida: uma pessoa que deixou de estar presente em seu meio familiar, seu ambiente de trabalho, seu grupo de amigos; idosos que poderiam ter aproveitado mais alguns anos — ou décadas — ao lado dos filhos, netos e bisnetos; mães que cuidavam de toda família; colegas que arrancavam sorrisos por onde passavam; jovens que tinham sonhos a realizar.
A 57ª morte em Caxias foi de José Vilmar dos Santos, morador de Forqueta, casado, pai de quatro filhos e avô de dois netos. Aos 58 anos, ele morreu no dia 12 de agosto após contrair a infecção por coronavírus no final de julho. No Dia dos Pais daquele ano, em 9 de agosto, Santos estava internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Virvi Ramos, pra onde fora levado com urgência ainda no dia 5. O dia que tradicionalmente era de celebração, teve tom de preocupação devido a um surto de contágio que atingiu cerca de 15 pessoas da mesma família. Além do pai, estavam internados, naquele domingo, três filhos — dois em Farroupilha e um em Lajeado, sendo que este último chegou a ficar 54 dias hospitalizado.
— Só perdendo uma pessoa da família para ter noção do que é. Achávamos que a pandemia não era nada e aconteceu o que aconteceu. Foi muito sofrimento. Não tivemos nem a chance de nos despedir dele, de nos abraçarmos entre os familiares. Até o caixão precisei escolher por videochamada com o pessoal da funerária — relata Diego dos Santos, 30, filho que também contraiu a doença, mas que não chegou a precisar de internação.
Quase um ano após o episódio, a família ainda sente a lacuna deixada pelo patriarca. Ele, a mulher e os quatro filhos são de Santa Rosa e chegaram a Caxias do Sul em 1999. Parte da família dedicou-se ao plantio de videiras enquanto a outra foi trabalhar na indústria. Há nove anos, Diego deixou a agricultura para trabalhar como colorista em uma empresa de plásticos. Três anos depois, o pai também fez a migração e passou a integrar a equipe de produção na mesma fábrica.
— Até hoje evito passar pelo setor onde ele trabalhava. Ele era muito brincalhão, um amor de pessoa — lembra o filho.
Para além do trabalho, os momentos de lazer também perderam a cor desde que Santos morreu. Partidas de futebol entre Grêmio e Inter costumavam mobilizar a família, que era metade gremista, com Santos e dois filhos, e metade colorada, com a mãe e outros dois filhos. Diego integra a ala vermelha e até das "cornetas" que recebia do pai sente falta.
— Estávamos sempre juntos quando tinha jogo. Agora, quando vemos o Gre-Nal, sempre dá muita saudade — afirma Diego.
"Infelizmente, muitos 'Vinis' ainda vão passar por isso", lamenta a mãe que perdeu filho de 20 anos
A morte de Vinícius Lucas Gomes Marinoski, de apenas 20 anos, registrada no dia 25 de março de 2021, abalou não apenas familiares e amigos do jovem, mas também uma cidade que, após mais de um ano da confirmação dos primeiros casos, ainda convive com as incertezas de uma doença que não foi plenamente desvendada pela ciência.
Para a mãe dele, Daiane Francieli Gomes, 37, a dor de perder um dos três filhos — o primogênito — foi agravada pelo fato da morte ter sido causada por um vírus tão agressivo e, além disso, pela falta de suporte que ela relata ter enfrentado desde que o jovem apresentou os primeiros sintomas.
— O luto é muito difícil mas, mais difícil ainda, é estar precisando de assistência e o sistema não prestar assistência. Se eu pudesse gritar aos quatro cantos, não apenas pelo meu filho, mas por todas pessoas que estão nesta situação. Infelizmente, muito "Vinis" ainda vão passar por isso — relata Daiane.
Ela conta que Vinícius começou a apresentar sintomas no dia 7 de março e que foi, inicialmente, tratado para dor de garganta, sem ter acesso ao teste pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Por orientação do Ministério da Saúde, em função da quantidade limitada de testes, a comprovação é disponibilizada somente em pessoas que apresentem quadro respiratório agudo, além de, pelo menos, dois sintomas característicos da doença.
— Ele ficou uma semana com febre e morreu com febre. Queria que as pessoas não colocassem na gaveta isso que está acontecendo, temos que pensar nos que estão aqui, precisamos salvar essas vidas, é muito triste o que está acontecendo — lamenta a mãe.
Na floricultura onde trabalha, no bairro Santa Catarina, as flores se misturam às lembranças. O corpo de Vinícius foi cremado e uma urna guarda as cinzas que, segundo Daiane, poderão ser levadas por ela onde for. Da memória da mãe também não sai a música Será, da banda Legião Urbana, que o jovem escutava nos fones de ouvido quando sentiu falta de ar pela primeira vez. Uma letra escrita muito antes da pandemia mas que, para Daiane, faz, hoje, muito sentido:
— Quando fui amparar ele, escutei que tocava "será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?" — conta a mãe, emocionada.
"Mais uma morte que poderia ter sido evitada"
Participar de um grupo de apoio composto por familiares de pessoas que morreram de covid-19 tem sido um suporte importante para Aline Tanaã Tavares, 37, que perdeu a mãe para a doença em 21 de março de 2021. Algumas questões, porém, ela diz que ainda sente dificuldades em superar. Eva Tavares, atriz e ex-diretora de Cultura de Caxias do Sul, morreu aos 65 anos, faltando 12 dias para ter disponível, à sua faixa etária, a primeira dose da vacina.
— Se tivéssemos um governo responsável, que tivesse adquirido a vacina antes, ela não teria morrido. A morte da minha mãe foi mais uma entre tantas que poderiam ter sido evitadas. Imagina o sofrimento que isso gera — diz a filha, referindo-se aos atrasos das negociações com diferentes laboratórios que têm sido apontados na CPI da Covid.
Eva foi diagnosticada exatamente um ano depois do primeiro caso ser confirmado em Caxias do Sul, em 11 de março, uma quinta-feira. Naquele domingo ela apresentou piora e precisou buscar novamente atendimento clínico, como lembra a filha. O colapso no sistema de saúde que o município enfrentava naquele momento, com lotação máxima em todos os hospitais, fez com que a paciente ficasse aguardando por internação no setor de emergência de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) durante três dias. Eva ficou mais cinco dias internada em leito clínico hospitalar.
— Chegamos a ouvir dos médicos que, se ela piorasse, não teriam condições de prestar o atendimento necessário porque não havia estrutura disponível. É importante falar que tudo isso tem um impacto muito grande na vida de quem fica. Muitas coisas ainda não são faladas, por mais que este tipo de situação esteja ocorrendo todos os dias. Além disso, não podemos deixar isso ser normalizado, porque não é normal. Um tanto de mortes era, sim, esperado, mas contávamos com ações que pudessem conter isso em algum momento. Não há políticas abrangentes de cuidado à saúde mental, não temos auxílio financeiro adequado pra que as pessoas não precisem se arriscar indo trabalhar. Eu entendo que há falta de responsabilidade individual, mas também há muita omissão dos governos — opina Aline.
A dor da saudade sem despedida
O Cruzeiro sequer era considerado bairro em Caxias do Sul quando Honorino Silvestre Bianchi e Therezinha Formolo Bianchi estabeleceram residência por lá. A decisão do casal em morar no local foi motivada pela necessidade de continuar a criação de gado de leite, iniciada ainda na Rua Tronca, no Exposição, em uma propriedade que Bianchi havia adquirido aos 18 anos. Na década de 1950 a urbanização avançava na área mais central e a mudança para uma região afastada possibilitou a expansão da produção de leite, além da criação de porcos, atividades que garantiam o sustento da família de oito filhos. Além disso, Bianchi também foi motorista de prefeitos como Euclides Triches (PSD) e Armando Alexandre Biazus (PTB).
Em 2020, o casal que viu o Cruzeiro se tornar bairro celebrava os 66 anos de um matrimônio feliz; o ponto de partida da família que hoje tem 18 netos e dois bisnetos e inclui, ainda, um filho de criação, o padre Renato Antonio Ariotti, 60. Dentro de uma mesma semana de dezembro de 2020, Therezinha e Bianchi, aos 87 e 94 anos, respectivamente, foram vítimas da covid-19. A perda repentina dos pais — que também eram avós e bisavós — abalou a família. No mesmo período, outros três integrantes do clã estiveram infectados. Um dos filhos do casal, de 55 anos, chegou a ficar um mês internado em UTI e ainda convive com os efeitos da doença que comprometeu seus pulmões.
— Foi o momento mais triste da minha vida. A mãe teve uma evolução muito rápida, não deu tempo da gente se preparar com nada. Em menos de dois dias de internação recebemos a notícia da morte, dia 11, e isso foi muito impactante. Meu pai tinha sido internado no dia 7. Tínhamos esperança que escapasse, mas acabou morrendo no dia 18 sem saber que a mãe já tinha partido porque falamos que ela tinha melhorado e ido pro quarto — relata Maria Teresinha Bianchi Galiotto, 57, filha do casal.
Ela conta que quando o pai morreu, seu irmão estava internado na mesma UTI desde o dia 14, no Hospital do Círculo, mas sem necessitar de entubação. O corpo do pai foi removido da unidade com o cuidado para que o filho não ficasse sabendo do óbito.
— Ele soube somente uns 10 dias depois porque começamos a ficar muito preocupados, temíamos que ele pudesse ter o mesmo desfecho — relata Maria.
Segundo ela, o contágio generalizado foi descoberto a partir de um teste que sua irmã precisou fazer para retornar à Alemanha — país onde vive há 40 anos — depois de uma visita de 20 dias à família no Brasil.
— Ela veio no dia 7 de novembro, testada, e foi embora no dia 27. No dia 29 soube do resultado e telefonou para nos avisar. Conseguimos fazer o teste somente na segunda-feira, dia 30. Além dela, também estavam infectados nossos pais e outros três irmãos nossos, sendo que dois tiveram apenas sintomas leves — lembra.
A perda dos pais deixou uma lacuna na família que sequer pôde despedir-se da maneira que gostaria, algo que tem agravado o sofrimento de quem perde amigos ou familiares para a covid-19.
— Foi muito difícil porque o procedimento impede que a gente sinta novamente a mão, o rosto, ou possa dar um beijo de despedida. Como filha, como irmã, como humana, é muito triste, principalmente por não poder dar ou receber um abraço de ninguém — completa a filha.