"Liberdade. Não tem outra palavra." Com um sorriso nos lábios, Hugo Pereira Antônio, 27 anos, define o sentimento que tem ao montar um cavalo e trotar ou galopar pela pista de treinamento ou durante uma competição. Cego desde os três anos, ele veio do Rio de Janeiro para Caxias do Sul treinar para a modalidade Inclusão de Ouro, que integra o Freio de Ouro. A segunda edição da prova será disputada em 28 de novembro, em Esteio. Os treinos acontecem três vezes por semana no Centro de Treinamento Júnior Daboit, em Fazenda Souza. A escolha por Caxias foi pela questão de logística e financeira. Como a prova é em Esteio, é melhor que Hugo treine no Estado ao invés de fazê-lo no Rio de Janeiro e ter que transportar o animal até o Rio Grande do Sul para competir.
Hugo caminha com confiança até a égua Conquista do Camboatá. Ele toca o animal lentamente e conversa baixinho com ela, como se pedisse permissão para montar. Já há uma certa proximidade entre eles. Com desenvoltura, ele encilha a égua e segue com ela até a pista. Enquanto cavalga, o ginete mantém a tranquilidade e a alegria mesmo quando Conquista se aproxima mais da cerca:
— Achei o ponto — diz, sorridente, ao perceber que controlou o galope da égua.
Para ele, a competição significa mais do que superação.
— Quero inspirar as pessoas e buscar inclusão e acessibilidade. Eu tenho experiência em montar. Essa minha vivência na roça faz com que eu tenha mais facilidade e desenvoltura para caminhar em um terreno acidentado. Mas nem todos conseguiriam circular com uma bengala ou uma cadeira de rodas.
Ao seu lado está o treinador Felipe Arsuffi, 34, que é a voz que o orienta na pista:
— Vim para ser o ponto de referência dele, para que ele tenha noção da pista e para formar um conjunto: eu, ele e a égua. Não vim treinar ele porque o Hugo sabe fazer isso muito bem. Ele sabe montar.
Os dois se conheceram em lives nas redes sociais e acabaram se aproximando. O caxiense é criador do método Doma Livre, que é uma filosofia de iniciação e correção de desvio de comportamento de cavalos que viveram algum trauma ou tem algum problema e precisam de reabilitação. Ele trabalha e mora no distrito de Criúva e hospedou Hugo em casa.
— Eu tenho cavalos, mas não preparados para a prova de inclusão. Precisamos de um cavalo preparado e com vivência e experiência na prova porque tem pouco tempo para treinar. Tem que ter um que tenha habilidade para facilitar o treinamento. Por meio de vários amigos em comum chegamos até o Centro de Treinamento do Júnior, que abriu as portas do CT. E o proprietário da égua, Willian Perin, também nos emprestou a Conquista de coração para que o Hugo possa treinar e correr e, assim, começou o projeto — afirma.
Ele conta que foi feita uma campanha online, que contou com doações de todo o país para que Hugo possa realizar o sonho:
— O Hugo ia vir de ônibus, são mais de 30 horas de viagem. Fizemos uma vaquinha online porque esse meio é muito unido, e conseguimos custear as passagens de avião. São pessoas que abraçaram uma causa. Porque não é só uma prova, é um exemplo de superação para todos.
Arsuffi conta que conviver com Hugo é inspirador:
— Para mim tem sido uma experiência transformadora. Ele mexe nos meus cavalos em Criúva. Quem conhece sabe que o terreno é acidentado, tem pedras, tem cachorro, barranco e ele vai solto no cavalo. Ele não mede esforços. Não enxergar nunca o limitou. Isso é inspirador. O Hugo mostra que não há limites, que a limitação está na mente das pessoas. Ele se vira sozinho em tudo, independente. Ele é um exemplo e tem tocado e mudado a minha vida e a de todos que acompanham a trajetória dele.
Confira o vídeo:
A inspiração motivou a produção de um documentário para mostrar que é possível:
— Queremos mostrar que todos conseguem. Um amigo meu, Tiago Mineiro, que é domador e entende de edição, está reunindo esse material para que possamos incentivar as pessoas a fazerem o mesmo.
Hugo conta que, em homenagem ao Estado que o acolheu, irá montar pilchado. O proprietário do Centro de Treinamento em Fazenda Souza, Ângelo Daboit Júnior, 35, explica que no CT há atendimentos voltados para cavalos, preparo morfológico e treinamento para o Freio de Ouro:
— Temos experiência em receber treinamentos para as provas e lidamos com competidores. Mas é a primeira vez que temos um competidor que tem necessidades especiais. É inspirador para a gente ver como ele lida com o cavalo. É apaixonante essa troca.
Familiaridade com os cavalos
O contato de Hugo com os cavalos começou na infância. O jovem perdeu a visão aos três anos, depois de encarar um câncer que rompeu o nervo ótico. Ele venceu a doença, mas deixou de enxergar totalmente. Foi então que passou a frequentar aulas de música e de equoterapia.
— A palavra que define a minha relação com o cavalo é sensibilidade. As pessoas falam: "ah, mas você ouve mais, você tem o tato melhor". Não é isso, é porque eu treino mais. Não é que meu tato ou meu ouvido são melhores do que os de quem enxerga. É porque eu não tenho um sentido. Então, uso mais os outros e aprimorei e refinei — conta.
A percepção da respiração, da movimentação e da musculatura do animal é muito mais ligada ao cavalo, o que estreita ainda mais a ligação entre os dois:
— Consigo ouvir um cavalo pastando, mexendo a cauda e ouvindo ele respirar. A respiração dele é fundamental porque eu sei se ele está mais relaxado ou mais tenso. Desenvolvi isso com o tempo. Uso a sensibilidade e consigo sentir a musculatura dele. Claro que tem a energia também.
A paixão pelos animais o levou a escolher uma profissão que permitisse que tenha contato diário com os animais. Ele se formou em Zootecnia na Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais, em setembro deste ano.
— Quando chegou a hora do vestibular, pensei em Medicina Veterinária. Mas queria me dedicar a parte de nutrição e prevenção. Escolhi a Zootecnia e ingressei na faculdade em 2013. Atuo com a parte de alimentação, nutrição e busco levar essa adaptação dos centros equestres para incentivar a inclusão usando a minha experiência e vivência com os animais. Quero agregar meu conhecimento também da Zootecnia porque penso em acessibilidade sem prejudicar o cavalo. A transformação começa com passos de formiguinha, mas é o que busco a cada dia.
Apesar de montar a vida toda, ele não participou de muitas competições. Ele foi convidado para participar do Freio de Ouro pela criadora de cavalos crioulos, Flávia Araripe, e correu a prova classificatória em uma égua dela a LAA Allegra.
— Monto a cavalo a vida inteira. Eu comecei na Equoterapia e depois participei de provas e cavalgadas da minha região e sou paratleta no Tambor e Enduro. Corri outras modalidades, mas fui convidado para participar do Freio de Ouro há cerca de um ano pela Flávia. Fiz o treinamento na Fazenda Boqueirão, em Areal. Ela me deu todo apoio e o suporte para correr a prova classificatória em uma égua dela.
Ele complementa:
— Fiz o treinamento no Rio e o instrutor foi o Paulo Ayala. Foi um convite muito rápido. Fizemos um final de semana de treinos e a prova foi em 15 dias. Me classifiquei em sexto lugar. Comecei a participar de provas há um ano. A primeira prova oficial foi a do Crioulo e, depois, comecei a correr a do Tambor.
A prova
O Inclusão de Ouro foi oficializado em outubro de 2018 e teve a primeira prova realizada em novembro do mesmo ano. A grande final contou com o julgamento de Fernando Gonzales e José Francisco Moura.