Longe da escola, dos amigos, trancados dentro de casa, muitas vezes sentados em frente à televisão ou ao computador, sem brincar, correr ou jogar bola. Esse se tornou o cenário de diversas crianças em Caxias do Sul ao longo dos últimos meses devido à pandemia de coronavirus. O isolamento social, a suspensão das aulas e as medidas de restrição alteraram a rotina e afetaram a saúde física e mental de crianças e adolescentes. O tédio e a ansiedade que aparecem por passar tanto tempo em casa tiveram reflexos na balança. Muitas crianças estão comendo alimentos com baixa qualidade nutricional, em grandes porções e mais vezes ao dia. Outras aumentaram a quantidade de comida, e ainda há aqueles que desenvolveram transtornos alimentares e não conseguem comer normalmente.
As mudanças na rotina e o impacto psicológico do confinamento são apontados por especialistas como as principais causas que levaram ao aumento dos casos de obesidade infantil. Na Itália, uma das primeiras pesquisas a avaliar o assunto foi publicada no periódico Obesity. O estudo acompanhou 41 crianças italianas durante cerca de um mês. Ao comparar o comportamento dos pequenos em relação ao mesmo período de 2019, os cientistas perceberam que elas comiam, em média, uma refeição a mais por dia e aumentaram o consumo de bebidas açucaradas e alimentos como bolachas e salgadinhos.
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No Brasil, quase nove em cada 10 pediatras (88%) apontaram que as crianças apresentaram alterações de comportamento durante a pandemia de covid-19. Oscilações de humor, como passar de felizes e ativas para emburradas e retraídas, estão entre as queixas mais frequentes. Em seguida, aparecem sintomas como aumento da ansiedade, irritabilidade, depressão, agitação, insônia, tristeza, agressividade e aumento de apetite. Os dados são da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Federação das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), que divulgaram a pesquisa "O impacto da Covid-19 na saúde das gestantes, novas mães e seus filhos". O levantamento foi realizado por meio de questionário online entre 20 de julho e 16 de agosto. Foram ouvidos 1.525 profissionais, sendo 951 pediatras e 574 ginecologistas e obstetras de todo o país.
AUMENTO DE PESO PREOCUPA MÉDICOS
Em Caxias do Sul, o aumento de peso entre as crianças é percebido tanto nas escolinhas quanto em consultórios médicos. Mães relatam que os filhos chegaram a engordar de cinco a 10 quilos no período de isolamento social.
— Há dados científicos que mostram que mudou o padrão alimentar e aumentou o sedentarismo das crianças. O tempo de tela, que são as horas sentados em frente à televisão, computador, tablete ou celular aumentou muito durante a pandemia — ressalta o endocrinologista Clayton Macedo.
O médico alerta que o ganho de peso infantil pode não ser facilmente revertido e contribui com o risco de obesidade na vida adulta.
— O risco de uma criança obesa ser um adulto obeso é de 84% — aponta.
A pediatra especializada em nutrição infantil Ângela Rech Cagol segue a mesma linha. Ela afirma que o confinamento levou ao aumento do quadro de ansiedade porque as crianças e adolescentes deixaram de ir para escola, ver os amigos, brincar e ter atividades infantis:
— Elas podem demonstrar depressão com o aumento da ansiedade e da fome, e desenvolver compulsão alimentar. Em casa, a criança fica na frente das telas horas e horas, o que aumenta os riscos de aumentar os casos de obesidade.
Os horários para a refeição se tornaram mais confusos, aumentando as chances de beliscar entre as refeições. Os pais também se sentem sobrecarregados e nem sempre conseguem planejar as refeições. Assim, deixam de cozinhar e optam por pratos práticos, como congelados, fast-foods e petiscos.
Por isso, é fundamental que os pais criem novos hábitos alimentares e sirvam de exemplo aos filhos:
— A base da abordagem é trabalhar com o estilo de vida saudável. É preciso corrigir o padrão alimentar e as famílias que tem condições devem investir em consultas especializadas e em atividades físicas que sejam feitas pelo menos uma hora por dia. O ambiente familiar e o exemplo são importantes porque quando fazemos intervenção nos pais, os filhos emagrecem. Eles aprendem e se espelham no comportamento dos pais — frisa o endocrinologista.
A pediatra segue a mesma linha:
— Os pais acabaram liberando a alimentação porque os filhos estavam mais tempo em casa e eles não queriam privar os pequenos. Vamos ter que trabalhar muito para poder recuperar porque é uma questão preocupante. Eu tive pacientes que aumentaram até 10 quilos. Trabalho a reeducação alimentar e encaminho para a nutricionista quando percebo que a situação está em um ponto muito crítico.
Os dois orientam os pais a monitorar, controlar e reduzir o tempo que as crianças passam em frente às telas e incentivar a prática de exercícios:
— As crianças precisam ter gastos energéticos e ficar em frente às telas apenas quando estão realizando atividades escolares — diz o médico.
Ângela complementa:
— Acredito que só vai melhorar mesmo quando eles puderem voltar à rotina.
"Ele sente dificuldade para correr e fazer atividades físicas", conta mãe de menino que engordou oito quilos
Uma mãe de 43 anos, que teve a identidade preservada, conta que o filho de seis anos já tem uma propensão genética para engordar. Ela ressalta que o menino sempre foi fofinho e forte. Mas, durante o tempo em casa, a criança engordou oito quilos.
— O isolamento mudou toda a rotina e meu filho não fazia mais o mínimo de movimento, parou tudo. Na escola, ele subia e descia escadas, brincava e corria. Também fazia natação e de um dia para o outro ficou isolado, dentro de casa, sentado no sofá.
Para ela, é preciso considerar os fatores psicológicos porque as crianças ficaram numa bolha, sem outras crianças por perto e ouvindo só a voz dos pais. Ela ressalta que a pandemia provocou no filho dela ansiedade, depressão e angústia e ele passou a descontar os sentimentos e buscar conforto na comida:
— Ele não come porcaria, sempre comeu comida saudável, mas ele passou a aumentar a quantidade. Eu achei difícil de restringir a alimentação porque eu privaria ele de mais uma coisa. Eu sei que pequei, mas não queria privar ele e tornar tudo mais difícil.
Em conversa com outras mães, ela se identifica: há mais crianças que engordaram e também há aqueles que não conseguem comer normalmente. Preocupada, a mãe buscou ajuda médica e conversou com especialistas para ajudar o filho.
— A orientação é não fazer regime em crianças, mas cuidar para que ele não engorde mais, e mantenha o peso. Estamos fazendo isso. Percebo que ele lida bem com o aumento do peso por enquanto, não liga de estar mais gordinho, mas sente dificuldade para fazer atividade física. Ele está mais lento e, quando corre, vejo que ele não consegue alcançar os coleguinhas porque perde o fôlego e logo se atira no chão e diz que cansou. Nesse tempo em casa, era da cama para o sofá e do sofá para a cama. Ele foi perdendo o interesse por outras atividades.
Ela percebe que até o lado lúdico foi afetado.
— Meu filho era ativo e saudável. Gostava de TV, mas sempre queria criar, inovar, montava robô com caixa de papelão, andava de skate, de bicicleta. Com o isolamento, ele ficou muito em casa e, quando voltamos a poder sair com menos restrições, ele não estava mais a fim e foi se desinteressando. Noto que parte do lúdico, o criar, inventar e imaginar também foi abalado — desabafa.
"Meu filho não engordou, mas percebi que aumentou a procura por lanches", conta mãe de menino de cinco anos
Uma mãe de 34 anos, que também prefere não ser identificada, conta que o filho de cinco anos não engordou, mas passou a procurar mais lanches durante o tempo em que passou em casa. Como a questão da alimentação está diretamente ligada ao emocional, ela percebeu que a criança demostrava ansiedade e tédio, o que fazia com que quisesse comer o tempo todo.
— Ele buscava comidas para beliscar, principalmente lanchinhos. Eu e meu marido tínhamos uma demanda de trabalho normal. Até aumentou a carga de trabalho por estarmos em casa. E nosso filho precisava de atenção. Eu estava fora de casa e meu marido em home office, mas com dedicação total. Ele estava passando muito tempo na frente da televisão e jogando vídeo game — afirma ela.
Ela ressalta que fora da escola, sem recreio, atividades físicas, dança, futebol e brincadeiras, ele ficou trancado. E isso começou a provocar problemas:
— Ele começou a não conseguir dormir, acordava três vezes por noite. Ele estava entediado e não tinha mais aquela perda de energia. Se tornou estressante para ele e para nós porque não conseguíamos dar atenção a ele e, às vezes, a gente fazia alguma coisa mais rápida nas refeições.
Com a volta para a escola, a questão alimentar e até mesmo o sono melhoraram:
— As rotinas alimentares dele estão melhores. Não tem mais aquela procura por "belisquete" o tempo todo. Até mesmo nos fins de semana notamos que ele está melhor. O sono melhorou muito porque era uma criança que não estava mais dormindo e sabemos que a alteração de sono está ligada ao metabolismo. Se prolongasse mais o tempo em casa, com certeza iria ter consequência. Não estávamos mais conseguindo criar a rotina das refeições porque era o tempo todo uma ansiedade, alterando o humor, o sono e a estabilidade emocional.
Ela complementa:
— Eles têm a percepção que vão viver um novo normal. Ele estava entrando numa questão emocional muito forte, até com agressividade, para extrapolar o que sentia, e hoje as crianças estão aprendendo a dar valor a tudo, assim como os adultos têm feito.
"Temos observado crianças crescendo com diversos problemas de saúde", aponta educadora física
Vânia Dal Bello, 38, é educadora física e trabalha com Pilates para crianças. Ela afirma que não é apenas a obesidade que preocupa e, sim, problemas que ainda não estão visíveis, mas tem afetado os pequenos.
— Já víamos um alto índice de crianças crescendo com desvio postural, triglicerídios e colesterol alterados. Até pelo clima da nossa região, porque nos períodos mais frio têm menos movimento. Com a pandemia, eles ficaram sem poder sair e brincar e isso reflete mais para a frente _ frisa ela.
Antes da pandemia, Vânia destaca que as crianças se movimentavam nas escolas e fora delas. Mas, mesmo assim, já chegavam para buscar ajuda com dores nas costas e nos braços. Isso vinha se tornando rotineiro. Com o isolamento, a questão se tornou ainda mais preocupante:
— Começamos a perceber em conversas com diversos profissionais que as crianças estão chegando em estágios críticos porque canalizaram a energia que não estão gastando nos alimentos. Agora, é preciso olhar para esses casos para ensinar as crianças e mostrar para elas o que é preciso para cuidar do seu corpo.
Ela finaliza:
— Muitas coisas que antes não eram vistas nas crianças, agora vão chegar mais rápido aos profissionais. É preciso os pais estarem atentos não apenas ao desenvolvimento cognitivo, mas também para o desenvolvimento motor e incentivar a prática de atividades físicas. Os pais tem que observar os filhos para perceber se estão comendo por angústia ou ansiedade, incentivar a brincar e, às vezes, brincar com os filhos e também se movimentar com eles em brincadeiras, como pular corda, sobe e desce na cadeira, fazer cambalhota na cama.
REMÉDIO É ALIADO NO COMBATE À DOENÇA ENTRE ADOLESCENTES
Em uma decisão pioneira no mundo, o Brasil autorizou o uso de um medicamento emagrecedor para adolescentes. O aval, que foi concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no início de agosto, liberou a liraglutida para meninas e meninos a partir de 12 anos.
— A mudança de estilo de vida tem bons resultados, mas quando alia medicação para quem tem obesidade o resultado triplica. Hoje, temos uma medicação para o uso de adolescentes de 12 anos ou mais que sejam diagnosticados com obesidade — explica o endocrinologista Clayton Macedo.
Ele acrescenta ainda que existe um estudo público numa das maiores revistas médicas do mundo que mostra a eficácia na perda de peso e a segurança na faixa etária dos adolescentes.
— É uma evolução da medicina o uso com adolescentes. A medicação sinaliza a questão da saciedade, e é uma aliada no combate da obesidade, que é uma doença, e precisa ser tratada.