
Uma base de dados desatualizada e decisões políticas podem ter deixado milhares de pessoas sem acesso à segunda parcela do auxílio emergencial em Caxias do Sul. O benefício foi negado, por exemplo, a pessoas que foram candidatas a vereador nas últimas eleições municipais em 2016. Isso ocorre, porque o governo federal decidiu cruzar dados com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mesmo sem previsão legal. O Ministério da Cidadania também resolveu vetar o recebimento do benefício por parte de familiares de presos. O critério foi colocado em prática, novamente, sem qualquer previsão na lei que criou o benefício.
Em Caxias do Sul, de acordo com dados do Cadastro Único, em abril, quando foi liberada a primeira parcela, das 8.712 famílias beneficiadas pelo Bolsa Família, 7.526 receberam o valor liberado pelo Governo Federal. Em maio, das 8.730 famílias beneficiadas, 7.113 tiveram acesso à segunda parcela do auxílio emergencial. Nesses casos, o benefício do Bolsa Família foi substituído pelo de valor maior, no caso o auxílio emergencial. Mas os números de quem não recebeu podem ser superiores, já que nesses dados estão apenas aqueles que recebem Bolsa Família.
Chama atenção ainda o fato de, na segunda lista, referente a maio, 1.126 pessoas que são beneficiárias do Bolsa Família constarem como detentos. Na prática, essas pessoas estariam em regime fechado, e não teriam direito ao benefício. Contudo, não é o que tem sido visto pelos servidores do Cadastro Único:
— O que percebemos quando nos procuram é que essas pessoas não foram presas ou já cumpriram pena há muitos anos. A pessoa identificada no sistema prisional em regime fechado não tem direito, afinal está preso, mas aqueles que cumpriram a pena e responderam à Justiça, e se encaixam no perfil do programa, em tese seriam beneficiados. Não temos acesso à base de dados que eles cruzaram para saber de onde foram tirados, então não temos como fazer o recurso dessa família. Eles deixaram de receber o benefício, então reduziu ainda mais a renda — explica o diretor de Benefícios Assistenciais e Transferência de Renda do Cadastro Único, Rafael Zucco.
DIFICULDADES
O calendário de pagamento do Programa Bolsa Família começou em 18 de maio. Foi quando começaram os problemas, porque alguns beneficiários não conseguiram sacar nenhum dos benefícios. Ao tentar sacar, a informação no extrato era de cancelamento com motivo como "decisão do ministério" e a data de junho como próximo pagamento.
O meio disponível para o gestor municipal do Cadastro Único é um chat, sem que o retorno seja repassado ao município. Para os usuários, está disponível o telefone 111 para dúvidas do Auxílio e o 121 do Ministério da Cidadania.
_ No informe que recebemos, consta que a contestação para as famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família estará disponível em breve, e então vão poder contestar via aplicativo, mas ainda não está disponível. Ficamos de mãos atadas, sem poder ajudar ou encaminhar recursos para auxiliar quem tem direito e não recebeu os valores.
Benefícios generosos e gente sem receber
Ao mesmo tempo, os cruzamentos de dados feitos pelo Ministério da Cidadania e pela Dataprev, empresa pública de gestão de dados, não evitaram que cargos públicos, familiares de políticos e militares recebessem os valores. Na Serra Gaúcha, posts em redes sociais apontam para casos de supostas irregularidades no pagamento em pelo menos cinco municípios: São Marcos, Veranópolis, Carlos Barbosa, Garibaldi e Nova Prata. As denúncias sobre pessoas que supostamente não teriam direito ao benefício começaram a circular desde que as listagens foram divulgadas pelo Portal da Transparência do governo.
As eventuais fraudes aliadas aos novos critérios têm gerado dúvidas e questionamentos nas cidades. Segundo Zucco, o que complica ainda mais a situação é que muitas das famílias que foram excluídas do pagamento do auxílio também não conseguiram receber o dinheiro referente ao Bolsa Família.
— Temos presenciado diversas situações de pessoas que têm renda zero, que seria o perfil para o pagamento do auxílio emergencial, e não foram beneficiadas em Caxias do Sul. As famílias receberam a primeira parcela do auxílio, em substituição ao Bolsa Família, quando o valor era maior, mas na segunda parcela, em alguns casos não receberam nenhum dos valores.
No último dia 2, o Cadastro Único recebeu a lista dos "não elegíveis ao Auxílio Emergencial". Esta listagem contém os beneficiários do Programa Bolsa Família do município que não receberam o auxílio e o motivo:
— Há pessoas que concorreram nas eleições apenas para preencher as cotas, e que recebem o Bolsa Família e estariam aptas ao benefício e não foram contempladas. Assim como há os casos em que aparecem como detentos, mas estão em liberdade — esclarece.
Chefes de família e sem acesso aos benefícios

Moradora do bairro Centenário, uma mãe de 31 anos, que também é chefe de família e sustenta seis filhos, não recebeu o pagamento da segunda parcela e tampouco do Bolsa Família. Ela prefere não se identificar para não expor os filhos, mas relata que a renda familiar vem de faxinas e, por isso, conta com o programa há sete anos. Os filhos tem 15, 14 , 11, sete, três e um ano. No extrato, quando tenta sacar, aparece que o benefício do Bolsa Família está cancelado ou suspenso, e a data de junho como próxima data de saque.
— O governo fez o auxílio (emergencial) para ajudar e eu fiquei sem receber nenhum dos benefícios. Tenho seis crianças para sustentar, aluguel para pagar. Se eu não tivesse explicado para o dono da casa, e ele compreendido a situação, talvez eu estivesse na rua com os meus filhos sem casa e passando fome, porque, sem explicação, tiraram os dois benefícios — lamenta ela.
Já na lista do Cadastro Único, ela consta como detenta e valor do Bolsa Família maior que o auxílio emergencial, o que não se confirma, uma vez que o benefício (Bolsa Família) é de R$ 294.
A situação é a mesma de uma moradora do bairro São Ciro, de 28 anos. Ela tem três filhas de três, quatro e seis anos. A mulher, que também é chefe de família, recebe o Bolsa Família há pouco mais de um ano. O valor repassado pelo programa é de R$ 358.
— Trabalhava fazendo faxina e dependo desse dinheiro do Bolsa Família. Tenho que pagar aluguel, comida e manter as meninas. Em abril, recebi os R$ 1.200 (do Auxílio Emergencial para mulheres chefes de família), mas em maio fui no dia 20 sacar e não tinha dinheiro na conta. No primeiro pagamento, aparecia que tinha direito a outras duas parcelas, mas até agora não recebi a segunda. Meu pai me ajuda quando pode, as faxinas reduziram muito. Consegui uma cesta básica e vamos tentando nos virar — desabafa ela.
A mesma situação se repete com uma moradora do bairro Desvio Rizzo. No caso dela, no entanto, ela realmente já esteve presa. A mulher de 25 anos, mãe de três filhos de nove, seis e um ano, e grávida de sete meses, também tem o nome preservado.
— Quando fui pegar a segunda parcela do auxilio que viria no lugar do Bolsa Família, não tinha nada, e aí eu soube que é por estar cumprindo pena, mas eu já paguei pelo meu crime e estou em liberdade, tanto que me cadastrei no Bolsa Família e recebia normalmente. Esse valor ajudou muito, e agora tive que pedir cesta básica porque meus filhos precisam comer _ conta ela.
O QUE DIZ
Por meio de nota, a Diretoria de Comunicação Social do Ministério da Cidadania informa:
Cruzamento de dados
"O processo de elegibilidade e pagamento do Auxílio Emergencial compreende o cruzamento do maior número de bases existentes, chegando à casa dos bilhões, e obedece rigorosamente aos critérios estabelecidos na Lei 13.982/2020. Quase 60 milhões de pessoas receberam o Auxílio Emergencial, e o crédito da segunda parcela já está em andamento.
Parte das bases de dados utilizadas recebe atualizações. Uma nova informação pode sinalizar possível divergência cadastral, de forma automática, sendo, então, priorizada uma reavaliação dos dados inseridos pelos requerentes. Confirmada a elegibilidade do CPF, o pagamento é liberado.
Importante salientar que a evolução na verificação do processo é constante, onde são fundamentais a segurança e a agilidade para que os recursos cheguem aos que mais precisam.
Além disso, o Ministério da Cidadania e a Dataprev desenvolveram ferramenta para o acompanhamento da solicitação do Auxílio Emergencial. O endereço eletrônico é www.cidadania.gov.br/consultaauxilio."
Contestação sobre registros de trabalho desatualizados
"Para concessão do Auxílio Emergencial, o sistema realiza conferência em um conjunto de bases de dados governamentais que possuem características e finalidades diferentes e que estão sob gestão de diversos órgãos.
Um deles é a Rais, registro administrativo (de informações sociais) no qual constam as informações de trabalhadores e empresas. Os dados da Rais são informados anualmente pelos empregadores, sendo estes responsáveis legais pelas informações prestadas, tais como a ocupação, data de contratação e demissão, entre outras. As informações são prestadas de acordo com calendário estabelecido pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia.
Com relação ao processo de elegibilidade de cidadãos que foram candidatos nas eleições de 2016 e 2018, não eleitos, e tiveram seu auxílio negado em primeira análise, o Ministério da Cidadania e a Dataprev esclarecem que não será necessário recadastrar ou fazer qualquer operação no aplicativo. A regra foi ajustada para reanálise, iniciada em 30 de abril, e todos que tiverem direito receberão as 3 parcelas do benefício."
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