A escassez de comida em centenas de lares caxienses é o reflexo mais grave da crise instaurada pela pandemia do coronavírus em Caxias do Sul. Os números divulgados pela Fundação de Assistência Social (FAS) mostram um rápido declínio na renda das famílias que perderam emprego, tiveram salários reduzidos, contratos de trabalho suspensos ou viram minguar seus pequenos negócios durante o distanciamento social. São pessoas que enfrentam enorme dificuldade para retomar à normalidade e garantir o sustento básico. O alento é a corrente solidária que está se fortalecendo em Caxias para amenizar o drama de milhares, além do auxílio emergencial de R$ 600 que deve beneficiar 53.251 moradores, de acordo com dados preliminares do Ministério da Cidadania.
Somente no mês de abril, foram entregues 6.681 cestas básicas pelo município. O volume é oito vezes mais do que os repasses mensais de antes da pandemia. É como se a instituição tivesse entregue uma cesta com arroz, feijão e outros alimentos básicos a cada seis minutos durante 30 dias consecutivos noite e dia. Ainda assim, é uma escala aquém da realidade, uma vez que há diversas frentes de arrecadação e doação de alimentos espalhadas pela cidade.
Embora espantoso, o número não traduz a gravidade da situação. Ana Luiza Viganó, diretora de Proteção Social Básica da FAS, diz que no grupo das cestas básicas há 2.071 famílias que não tinham vinculação com a rede e foram atendidas da mesma forma. Antes não buscavam a rede por estarem numa situação mais confortável e não conheciam o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Agora, superam o próprio orgulho para espantar a fome e engrossam a lista dos necessitados.
Como pondera uma profissional do setor, a situação mostra que o público-alvo de outrora, muitas vezes criticado pelo suposto comodismo, está ganhando a companhia de outros perfis e indica outra constatação preocupante. A linha da extrema pobreza em Caxias já vinha em alta desde o ano passado e arrastou mais 968 famílias nos últimos meses, de acordo com levantamento mais recente do Cadastro Único. Em março do ano passado, 6.381 famílias dependiam de auxílio do Bolsa Família por terem renda de até R$ 89 per capita, ou R$ 3 por dia. Um ano depois, são 7.349 famílias nesta condição, acréscimo de 15%, o maior número desde 2015.
A quantidade de moradores na extrema pobreza é muito maior, pois ainda não foram divulgados números fechados de abril e maio. A volta da miséria e da fome também é resultado do desempenho fraco da economia no início de 2020 e que sofreu o revés da pandemia.
Cestas básicas em Caxias:
Rosana Rodrigues da Silva, 32 anos, mãe de quatro crianças, está na leva dos desempregados que mergulharam no drama da despensa vazia. Ela perdeu o posto de trabalho em um supermercado na semana passada, ficou sem o salário de R$ 998 e o socorro surge por meio do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) Irmão Sol. Moradora do loteamento do Campos da Serra, na zona leste, Rosana garante o sustento da família com marmitas preparadas pelo Restaurante Popular _ o apoio inclui uma cesta básica. Outras 49 famílias ligadas ao Irmão Sol também ganham viandas.
Rosana trabalhava como caixa há um ano e três meses. Sem salário, restou recorrer ao auxílio. As marmitas são a salvação e os sanduíches ocasionais que vêm como extra para o lanche da tarde das crianças complementam a alimentação. Essa ajuda somente existe porque os filhos dela estão vinculados ao Irmão Sol, ação social e educativa para crianças em vulnerabilidade. As refeições antes servidas no projeto agora são levadas para casa. Ela conhece histórias de famílias num quadro pior.
– Outro dia, uma vizinha não tinha fraldas para o filho bebê, usou um lençol. No desespero veio pedir uma pasta de dente emprestada. Me dá pena, tem gente sem ninguém para contar.
O apoio externo é crucial nesse momento. Rosana Rodrigues da Silva calcula que não terá renda por uns dois ou três meses, uma vez que o seguro desemprego só deve ser liberado quando houver definição do dissídio da categoria. O dinheiro da rescisão quitará as contas de luz e as parcelas do condomínio em atraso. O marido dela depende de ganhos ocasionais na mecânica do pai.
– É muito importante essa ajuda, não daria a volta. Meus filhos acordam e dormem comendo, crianças são assim. Na segunda-feira (dia 11), mandaram sanduíche para o café, é uma mão na roda – agradece Rosana.
Com renda obtida nas pesadas faxinas em diversas moradias, Patrícia Fagundes Ferreira, 34 anos, do bairro Esplanada, ficou sem sustento antes mesmo do decreto de distanciamento social em Caxias do Sul. Antecipando a prevenção, as escolas suspenderam as aulas. Isso levou a gurizada para dentro de casa e muitos pais viram com grande preocupação a presença de pessoas de fora do círculo familiar. Assim, as faxinas foram sendo suspensas. Patrícia só permaneceu com uma cliente. Ela não tinha reserva financeira e se viu sem dinheiro para comprar o básico para os dois filhos. Foi aí que surgiu a necessidade do auxílio de cestas básicas repassadas por um grupo de voluntários. A incerteza durou exatamente 30 dias, segundo a diarista.
– O trabalho está voltando, aos poucos, acredito que logo endireita. A conta de luz de abril paguei ontem (terça-feira, dia 12) – almeja Patrícia.
Retorno decepcionante
Se o ano já havia começado bem devagar para Esequiel da Silva Nunes, 46 anos, piorou com a covid-19. Ele foi metalúrgico e há um ano ganha a vida como motorista de aplicativo. Logo que o primeiro caso da doença foi confirmado em Caxias, no dia 11 de março, Esequiel tentou se resguardar.
– Fiquei uma semana em casa, preocupado, ainda mais com três filhos pequenos. Foi uma semana sem sair de casa. Depois, voltei às ruas – lembra.
O retorno foi uma decepção, um tropeço. Como ele reside na Terceira Légua, a maneira fácil de conseguir passageiros é na área central de Caxias. Passa 12 horas puxadas ao volante que rendem quase nada. Esequiel estima uma queda de 80% nas corridas em relação a outros meses, época que conseguia dinheiro para se manter, pagar contas, garantir as refeições da família e alguma diversão. O tombo nas finanças forçou o atraso das contas de luz e outras despesas. Esequiel não era cliente da assistência social. Na dificuldade, buscou atendimento no CRAS de sua comunidade.
– Não tinha a ficha lá, nunca precisei antes e sempre deixei para quem precisasse. Só que o CRAS agora não faz a minha ficha porque não tem como se inscrever – diz o motorista.
A comida em casa é toda de doação, um familiar consegue leite para as crianças. O que falta no cardápio, Esequiel compra com o lucro das poucas corridas. A esposa dele vendia salgados e doces no comércio e tenta manter a mesma produção da pré-pandemia, mas sem muito sucesso. Antes da crise, o motorista estava quase voltando para uma metalúrgica, mas a agência de emprego mudou de ideia e informou que as vagas estavam suspensas. Até a semana passada, o casal tentava solucionar o complicado acesso ao auxílio emergencial de R$ 600. Esequiel, porém, é consciente. Não quer receber muito mantimentos, pois sabe de pessoas que precisam de mais. O pai de família sente-se impotente e compara sua condição a uma prisão.
– Vai pra um lado, não dá, vai pra o outro, não dá. O dia a dia é difícil, o cara nunca se imagina assim. O carro garante uma coisinha ou outra. Mas também não adianta encher de comida em casa, vai estragar. O ideal seria um emprego – desabafa.