Na manhã do último sábado (7), o clima era de festa para a família Pigoni no balneário Bom Jesus, pertencente a Arroio do Sal, no Litoral Norte gaúcho. Dona Geny preparava o almoço e uma torta para celebrar o aniversário de 61 anos do genro Marcus Aurélio Fúlvio Pigoni. Como sempre costumava fazer nos dois ou três meses do ano em que passava na praia, Marcus, natural de Marília (SP) e radicado em Caxias do Sul há anos, convidou a mulher Rejane, 60, para uma caminhada à beira-mar, por volta das 11h. Ele jamais imaginaria que, após percorrer cerca de um quilômetro pela areia até Sereia do Mar, perderia a própria vida para salvar outra. Por volta das 11h, avisado por Rejane e de forma instintiva, ele decidiu desafiar o mar revolto para resgatar um menino de oito anos, que clamava por socorro. Acabou derrotado após ter engolido uma grande quantidade de água e, segundo a família, pela demora no socorro e pela falta de um guarda-vidas.
— Ele não hesitou. Entregou a corrente para a mãe e saiu correndo em direção ao menino. Meu pai sabia nadar, mas o mar estava muito agitado naquele dia — relata Patrícia, 31, uma das duas filhas.
A família Pigoni veraneia há 30 anos no balneário Bom Jesus. Marcus Aurélio, aliás, tinha planos de se mudar para a praia em breve. Não sem antes curtir um pouco mais o primeiro neto Lorenzo, filho de Patrícia, que completou dois meses um dia antes da fatalidade. E, claro, acompanhar ao lado de Priscila, 35, a outra filha, o nascimento, previsto para o início de maio, das gêmeas Júlia e Sophia. Que acabará não conhecendo.
— O pai era um ótimo nadador, era um peixe. A fofoca que a gente ouve que ele não sabia nadar me machucou demais. Ele não entrou na água para não voltar mais — frisa Priscila.
— Ele estava meio assustado com o mar desde o ano passado, quando uma rede enroscou na perna dele. Mas a paixão da vida do meu pai era aquele lugar. Ele gostava demais e queria morar lá. Nossa vida inteira foi ali — emenda Patrícia.
A tragédia poderia ter sido evitada caso a pequena Sereia do Mar contasse com um guarda-vidas. No entanto, nem durante a temporada de veraneio ela o teve. E esse é um dos principais lamentos dos familiares e que causou revolta de vizinhos e amigos de Pigoni, figura conhecida do balneário Bom Jesus. Ele e o menino foram retirados da água por outras pessoas que estavam na praia no momento do acidente.
— Eles jogaram uma corda e conseguiram puxar eles para fora. Por pouco dois deles não se afogaram. Também seguraram minha mãe, porque ela entrou em desespero e queria entrar. Foi muito triste — relembra Patrícia, com a voz embargada.
A demora para a chegada do socorro também teria contribuído para que a vida de Marcus Aurélio não pudesse ser salva. Conforme os familiares, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Arroio do Sal foi chamado, mas a ambulância teria demorado mais de 20 minutos para percorrer os cerca de cinco quilômetros até o local do acidente. O Samu se defende dizendo que o tempo de resposta é muito rápido após a entrada do chamado (cerca de um minuto), e o que pode ter acontecido é uma demora maior na abertura do chamado. Além disso, o Corpo de Bombeiros de Torres, único que atende às ocorrências na região e que está distante mais de 40 quilômetros do local, foi acionado.
Assustado, o menino de oito anos, que renasceu com o ato heroico de Marcus Aurélio, ainda é uma incógnita para a família, que não tem nenhum contato. Renascimento também é uma palavra que passa a ser aplicada à família Pigoni, surpreendida pelas peças que o destino costuma nos pregar.
— A gente tem que tirar forças não sei de onde para seguir em frente. O que ficam são as boas lembranças. Meu pai era a gentileza em pessoa. Para ter uma ideia, ele abria a porta do carro para mim. Então, já via ele como um herói. Agora, vejo muito mais.
Suporte praticamente inexistente fora do veraneio
O caso do afogamento de Marcus Aurélio Pigoni trouxe à tona, mais uma vez, a discussão sobre o abandono com o qual convivem os moradores do Litoral Norte após o término da temporada de veraneio. Desde 2 de março, com o fim da Operação Verão, Arroio do Sal, por exemplo, só conta com quatro guarda-vidas civis — dois em Arroio, um em Areias Brancas e um em Rondinha —, que fazem o mesmo treinamento dos militares, para os casos de emergência. No balneário Sereia do Mar, onde Pigoni morreu, sequer existe uma guarita. Aliás, existir, ela existe.
— Estamos com a guarita pronta. Mas não adianta deixar ela lá se não há gente para colocar. Este ano, o efetivo enviado para cá já foi menor. Em Sereia do Mar, sequer, teve um guarda-vidas durante o verão. Estamos batalhando há anos para que possamos ampliar o tempo da Operação Verão, porque em março as nossas praias também recebem um bom número de visitantes. Mas aí esbarramos no Estado e na falta de efetivo da corporação — lamenta o prefeito de Arroio do Sal, Affonso Flávio Angst (MDB), o Bolão.
Ele concorda que a tragédia ocorrida no sábado passado poderia, sim, ter sido evitada se, ao menos, se pensasse em uma forma de ampliar o tempo de atuação dos guarda-vidas no Litoral até a Páscoa. E sugere até que se incentive a formação de novos guarda-vidas civis para suprir a demanda do período pós-veraneio.
— Todos os anos é assim. São bombeiros que vem de outras cidades e precisam voltar após o término do verão. O certo seria ficarem um tempo a mais, pelo menos nas praias maiores, nos finais de semana. Se o Estado não consegue nos oferecer isso, que se formem novos civis que possam ajudar. Eu não posso contratar porque a lei não permite — destaca.
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